Nunca participei no desfile da Massa Crítica. Por duas razões fundamentais, primeiro porque vivo e trabalho fora de Lisboa, segundo porque ainda não me senti motivado o suficiente para ir ao Marquês de Pombal numa sexta-feira à tarde. Tampouco participei em outra qualquer Massa Crítica dentro ou fora do país, no entanto acompanho com interesse este movimento mundial nas suas várias versões incluído as portuguesas. As mais de trezentas cidades onde a cada última sexta-feira do mês, deslizam largos milhares de ciclistas são cenário dum dos maiores movimentos à escala global. São cenário e testemunha do papel que este movimento iniciado em São Francisco nos Estados Unidos, em 1992 tem tido numa certa forma de divulgar a bicicleta enquanto alternativa para a mobilidade urbana.
Cada cidade recria à sua maneira o desfile tendo por base o guião original. Ciclistas urbanos, mas não só, reúnem-se todas as derradeiras sextas-feira de cada mês num lugar fixo e decidem in loco o percurso e o destino. Circulando em massa compacta reivindicam para a bicicleta o espaço que de forma individual lhes está proibido pelo omnipresente automóvel em todos os outros dias do mês. À medida que percorrem as ruas e se cruzam com automobilistas e peões aproveitam para chamar a atenção para as questões da mobilidade, da bicicleta e doutros problemas presentes nas distintas realidades locais. A reacção aos desfiles Massa Crítica por parte dos cidadãos e das autoridades é na maioria das cidades boa mas não se pode dizer que é unanimemente aceite, até por parte dos ciclistas. Existem alguns casos de conflito sistemático entre ciclistas e polícia, sendo eventualmente o caso mais conhecido o de Nova Iorque e tem-se registado atitudes agressivas com brutais consequências por parte de automobilistas apanhados no meio da MC.
As Massa Críticas não são organizadas por ninguém em particular, são algo que existe, que se sabe onde e quando acontece porque se ouviu a algum amigo, se leu nalgum cartaz, num blog. Não são uma manifestação no sentido legal, porque fazem valer o direito que todos os cidadão têm de se deslocarem de bicicleta por onde bem entenderem desde que respeitando as regras aplicáveis, bem entendido. Prescindem deste modo de autorizações ou sequer comunicação às autoridades e do respectivo acompanhamento policial. Por esta razão não anunciam um destino ou um percurso, embora em algumas cidades exista um trajecto habitual e noutras terminem sempre no mesmo sítio. Mais frequentemente, e uma vez sufragado pelos participantes o destino, os massholes conduzem os demais ciclistas pelas ruas da cidade, seguindo uns quantos preceitos de forma a que o impacto no normal fluir do trânsito seja o menor possível.
As bicicletatas, como também são conhecidos as MC de Lisboa, têm tido nos últimos meses uma significativa adesão. Eventualmente fruto dum extraordinário Verão de São Martinho e indiscutivelmente graças ao aumento de commuters de bicicleta e ciclistas urbanos, Setembro terá reunido cerca de quatro centenas de pares de rodas em cortejo alfacinha. Por razões evidentes não foi possível confirmar este número junto da polícia, mas queremos todos acreditar que sim, 400 bicicletas juntas por Lisboa! Descontando um ou outro atrelado, mais umas quantas bicicletas com cadeirinha e algum tandem, podemos dizer que cada bicicleta seu ciclista, cada ciclista sua cabeça e cada cabeça sua sentença. Em tão diversa mole humana em movimento encontrar-se-ão seguramente espécimes de variadíssimas estripes. Por relatos variados na esfera bloguista, e noutras esferas mais quadradas, direi que por lá se encontrarão os habitués, os novatos, os estreantes, os bike-ninjas, os rufias, os betinhos, os chungas e muitos outros tipos que me podem fazer chegar pela caixa de comentários.
O confronto está presente no dia-a-dia de peões, de automobilistas, de ciclistas, em suma de todos quantos nos cruzamos nos dias-e-dias. Ele é a passadeira que não é respeitada, o lugar no comboio que não se dá à velhinha, a buzinadela desnecessária que sobressalta o transeunte, enfim um fartar de conflitos, uns mais físicos outros mais morais, para os quais contribuímos todos por acção e tantas vezes por omissão. Quando um bando de ciclistas resolve passear em plena hora de ponta pelo meio de concorridas artérias do centro lisboeta, se há coisa que provoca é, esta-se mesmo a ver, conflito. E a troco de quê? Da consciencialização dos demais cidadãos para a necessidade duma cidade mais amiga da bicicleta? Para afirmar o velocípede como alternativa à mobilidade urbana? Para reclamar o espaço alocado quase em exclusivo ao poluidor e gastador automóvel? Se respondeu sim a estas perguntas, responda lá a esta: e porque é que provoca conflito? Vou dar a minha resposta a ver se concorda.
Provoca conflito porque colide com desprevenidos cidadãos que vêem nas invasoras bicicletas um excelente alvo para a ira acumulada por uma vida cada vez mais difícil. Cidadãos que são donos da estrada todos os dias do mês, que têm no carro uma extensão do seu ego moldado numa sociedade egoísta. Colide porque contribui para complicar ainda mais a vida de pessoas a quem os participantes na MC só queriam dizer “andem daí pedalar connosco”, mas que também têm todo o direito de não querem que lhes digamos nada. Partilho da ideia que as bicicletadas deixam, por força do comportamento cívico da maioria dos participantes, uma imagem positiva em quem os vê passar. Da mesma forma sei serem “notícia” apenas os maus exemplos, o tal homem que mordeu o cão. Notícia é o taxista que se encosta à roda traseira duma bicicleta, é o ciclista que respondeu na mesma moeda ao exaltado condutor, é o peão que vocifera contra os “empatas”.
Houve recentemente uma viva e longa discussão no seio duma determinada comunidade ciclista exactamente sobre a questão comportamental dos participantes na MC alfacinha e foi esse debate, a que assisti com bastante atenção, que motivou inclusive este texto. São cada vez mais frequentes os relatos de participantes na MC que referem episódios que, segundo os relatores, em nada favorecem a causa ciclista. Se é verdade que não devemos tomar o todo pela parte, a verdade é que quando a parte, que embora não tenha a paternidade da Massa, advoga algum paternalismo, como que tendo pelo menos a custódia da coisa, decide andar às voltas numa rotunda e encazinar completamente o trânsito, ou quando opta sistematicamente pela rolha quando poderia simplesmente abrandar e esperar no semáforo seguinte pela reunião do grupo, ou quando decide uma passagem pelo aeroporto de Lisboa com as consequências que daí podem ocorrer, está à procura dum desfile que se faça notar também pelo engulho criado. Ou seja, o desfile que deveria ser uma festa para quem participa mas sobretudo para quem assiste, transforma-se numa manifestação de força e num embaraço desnecessário num já habitual caos. Assim como se um anúncio à aspirina fosse um sound-check do baterista dos Metallica.
Um evento que tem no próprio nome a palavra crítica tem forçosamente de saber lidar com a dita cuja e ser um fervoroso praticante da autocrítica. A desculpabilização dos comportamentos desviantes e a desresponsabilização do todo perante as consequências possíveis de atitudes menos ponderadas das partes não é um bom caminho. A bicicleta está na moda e nunca se conjugaram tantos factores favoráveis à afirmação dos pedais como alternativa. Neste momento arrisco a achar que é mais a bicicleta a promover os desfiles da MC que o contrário. Dizer que a MC é um movimento de cidadãos livres que podem fazer individualmente o que muito bem entenderem durante os desfiles é negar ao próprio movimento a razão de ser. É claro que os desfiles só são positivos de servirem para divulgar um modo diferente mas melhor de nos transportarmos. É claro que só valem a pena se contribuírem para formar melhores cidadãos com ou sem bicicletas debaixo dos rabos. O resto são massagens ao ego e vãs demonstrações de autoritarismos, snobismos, autismos, discriminação e preconceito.
PS: Em ralação ao facto de ter vertido tanto paleio e nunca ter ido a uma Massa Crítica, digo apenas que não preciso ser galinha para saber se o ovo está podre…