Arquivo de Marginal

MENTALIDADE SEGURA

Posted in cycle of sighns with tags , , , , , on 5 de Novembro de 2013 by Humberto

esquemaA segurança dum ciclista na estrada é posta em causa não pela acção concreta dos automobilistas mas sobretudo pelas ideias de segurança que tem a grande maioria dos automobilistas. Eu explico.

É legítimo um automobilista, ou qualquer outra pessoa, achar que quem pedala na estrada põe em risco a própria segurança, e até a segurança dele, automobilista. É razoável que quem de dentro dum automóvel, olha aqueles que se transportam em cima duma estrutura frágil, sem nada que os proteja dos elementos para além da própria pele e enfrentam na mesma arena máquinas muito mais fortes e velozes, pareça estar a arriscar muito e dessa forma, a pôr em risco a própria segurança.

Por haver um efectivo risco quando se anda de bicicleta no meio do trânsito automóvel, é reconhecida a necessidade de adaptar e actualizar a legislação, especialmente o Código da Estrada (CE), de maneira a aumentar a segurança para todos os utilizadores das vias. Mas uma vez publicadas as regras ideais, ficaríamos todos mais seguros? Como se implementa uma lei que obriga os automobilistas a passarem a pelo menos metro e meio dum bicicleta?

Um rápido olhar pela janela e damo-nos conta de como, apesar de tantas regras e sinais, o estacionamento automóvel é livre. quase anárquico. Ou como as velocidades impostas como limite, são na verdade e quase sempre as velocidades mínimas.

Não é o CE que vai fazer os automobilistas deixarem de me passar tangentes na Marginal. Muito menos será a polícia a medir as ultrapassagens irregulares. Quando tenho de ser automobilista existe uma única razão pela qual me afasto dum ciclista para uma distância segura e só então o ultrapasso. E essa é a única razão que fará com que outro qualquer automobilista se afaste também: a consciência de que ao agir doutra maneira, poria sempre uma vida em risco.

Em cidades onde a bicicleta é um alien, ainda que um alien simpático, é impossível circular sem rolar pelo passeio, desmontar sempre que se cruza numa passadeira, respeitar todos os semáforos ou nunca passar um verde-tinto, descer uma rua em contra-mão. Quer dizer, não é que seja uma impraticabilidade pura, é mais uma coisa natural já que um ciclista sente-se sempre mais próximo do peão que dum veículo motorizado. Andamos, vemos e ouvimos como um peão e é normal que interajamos com o meio duma semelhante maneira.

Faz sentido tirar as bicicletas do passeio quando se continuam a desenhar ciclovias pelo meio da calçada? Estender uma carpete vermelha pelo meio dum velho e esburacado tapete não é um convite ao “passeio”? Claro que é! É mais ou menos como marcar um seminário sobre nutrição na Confeitaria do Marquês.

A alteração das regras só é motor para mudar as mentalidades se houver implementação efectiva ditas. Embelezar os calhamaços sem cuidar do lado prático pode até contribuir para a ideia de que a “lei” não serve para nada. Tirar as bicicletas do passeio porque assim obriga a segurança dos peões, vai fazer com que, à medida que em Lisboa e noutras cidades, forem crescendo as áreas pedonais, estas sejam proibidas aos ciclistas. E isso não faz sentido nenhum!

Neste interessante artigo é sugerido o que pode a cultura da bicicleta no Japão ensinar ao Reino-Unido. Podemos aprender todos uns com os outros desde que acertemos na ideia que o que é essencial mudar são as mentalidades.

autocarro

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AS FORMIGAS E OS CARREIROS

Posted in cycle of sighns with tags , , , , , , , , on 14 de Maio de 2013 by Humberto

Os transportes públicos ou colectivos, o carro particular, as ciclovias e os capacetes são os lados que marcam o perímetro dentro do qual a bicicleta tenta encontrar o seu espaço. Sobre os TC escrevi um texto, seguido de outro sobre o automóvel e o que se segue é sobre ciclovias. Fica a faltar o lado dos capacetes.

Os transportes colectivos e o automóvel são o que todos temos de mais certo quando pensamos em sair de casa. Tanto Lisboa e Porto como outras cidades de dimensão têm bons ou razoáveis serviços de transporte urbano. Não sendo a solução para todas as necessidades de deslocação e cada vez mais com preços pouco competitivos com o carro, os TC são um factor determinante de desenvolvimento urbano e medidor da qualidade de vida dos cidadãos. O carro particular é o rei & senhor das nossas cidades e só muito aos poucos e em casos sempre pontuais que se lhe tolhe os movimentos. É efectivamente possível aceder a toda a cidades de carro. Eventualmente não de todos os carros, mas há sempre um carro que lá consegue entrar. Tomemos aqui em Lisboa o Terreiro do Paço. Dizer-se que a Praça do Comércio está fechada ao trânsito é um pouco exagerado olhando o exclusivo parque de estacionamento em que na realidade se transformou.

A bicicleta, esforçada e sempre prestável, consegue adaptar-se para ser complemento tanto dos TC como do carro. É já comum verem-se transeuntes com uma bicicleta numa mão e um bilhete na outra. Para quem vive numa zona menos central e menos servida de TC, tem por exemplo de levar os miúdos à escola, pode mesmo assim contar com a bicicleta como solução complementar, se não de todos os dias pelo menos quando não chove. O capaceteduque davial antiga -ao qual voltarei um destes dias mas sobre o qual pode ir lendo alguma coisa– representa um pouco como cada cabeça encara a bicicleta e de dentro do qual se podem tirar todas as discussões, as ciclovias são o lado mais prático, ainda que apenas virtualmente, e seguramente mais mediático da bicicleta urbana. As ciclovias ou faixas cicláveis ou como quiserem chamar aos carreiros específicos para bicicletas, são sempre o lado mais visível e transformador do (re)aparecimento da bicicleta na cidade. As ciclovias introduzem um elemento novo na paisagem, infelizmente quase sempre, no passeio.

Sendo certo que as estradas não foram construídas para os carros, hoje existem exclusivamente para eles e tantas vezes contra tudo o resto. É compreensível que os maus da fita não abram facilmente mão de tamanho privilégio. Direi que estamos no ponto em que ganha consciência a necessidade de tirar o domínio ao carro. Depois virá o dia da manifesta “vontade política” de fazer, o que já se sente por aí… Mais tarde virá a “decisão” a que se seguirá o “pôr em prática” realmente.  Nas economias ditas emergentes o aumento do poder de compra de maiorias até há pouco tempo afastadas do grande consumo, leva à concretização do sonho legítimo de ser proprietário dum automóvel. Lá como cá o carro é o mais apetecível sinal social de sucesso. Lá como cá abre-se o livro das contradições comuns tão conhecidas no velho mundo ocidental. Globais são também os erros e as soluções. Tal como cá, constroem-se milhares de quilómetros de asfalto ao mesmo tempo que se renovam os transportes colectivos. Agora que esses países se deparam com a queda do número de ciclistas e de peões, aplicam-se os mais avançados conhecimentos de planeamento urbano. O mundo inteiro está a mudar, é só olhar à volta.

As ciclovias são uma das formas de tirar ao carro algum do totalitarismo de que tem beneficiado nas últimas décadas. O automobilista que circula nas cidades onde as ciclovias estão por todo o lado, sente-se mais como um “par” no espaço público e não como “dono”. Quando é construída uma via que segrega positivamente qualquer meio de transporte, há uma imposição da partilha, não só em termos do espaço concreto mas sobretudo em termos de direito ao espaço. A questão que persiste por ser esclarecida é, numa cidade como Lisboa, qual o papel reservado à bicicleta no contexto dos problemas mais abrangentes da mobilidade. Vamos por momentos situar-nos na zona de Campo de Ourique. Bairro residencial, com muito comércio e alguns serviços, bem servido por transportes públicos e simpáticos locais de paragem e convívio.

Quais os problemas de mobilidade que existem em Campo de Ourique? Arrisco a dizer que todos estão relacionados com o excesso de automóveis. Não apenas dos que circulam mas sobretudo dos que páram. Ou seja, o carro é literalmente dono de Campo de Ourique, o rei, e como é tratado o rei para além de ser tratado com toda a impunidade? Vamos agora olhar para o estado da Rua Ferreira Borges. Poderia ser outra das tantas que Lisboa tem nas mesmas condições. Conheço muitas estradas de terra-batida em melhores condições que a Ferreira Borges! Se os carros, os donos da estrada, os senhores de Campo de Ourique são servidos desta maneira, acredita alguém que as ciclovias sejam solução para a circulação de bicicletas em Lisboa? Porque é que se vê tantos ciclistas nos passeios da Avenida de Roma? Porque não há ciclovia ou porque não há segurança no asfalto?

Lisboa é pequena mesmo para quem a faz a pedalar, como deixou claro o Paulo Guerra dos Santos. Quando ouço que Lisboa tem um problema de trânsito costumo responder que sim, que tem, mas é um pequeno problema. Paris, Londres, Madrid, Berlim têm problemas de trânsito! O que Lisboa não tem, o que Portugal não tem, é a vontade política de pegar pelos cornos a besta. Timidamente introduz-se as zonas de 30km/h mas continua a ser permitido a total anarquia no estacionamento. No tempo da realidade aumentada vivemos uma verdadeira mobilidade reduzida tal o número de barreiras arquitectónicas, autênticas ratoeiras como as esferas de mármore nos passeios. Basta ver o que foi feito na Duque d’Ávila. No papel a coisa prometia mas quando olhamos ao nível o peão, o que encontramos? Uma floresta de pilaretes, canteiros, carros estacionados e uma ciclovia que é por onde toda a gente anda, com ou sem rodas, porque é o único caminho a direito.

Neste vídeo está tanto de Lisboa que quase dói!

Tirado daqui à Bicicleta Voadora

Ficou melhor? Sem dúvida, mas a questão não é apenas essa. Resta saber que tipo de melhor é que se anda a construir. As ciclovias não fazem falta nenhuma na Lisboa de hoje. Se amenizar a paulada que já está a pensar em dar-me, acrescento: salvo poucas excepções -nenhuma contemplada até agora. Quem tem beneficiado com as ciclovias são os peões que assim podem evitar as escorregadelas e tropeções da velhinha calçada. O que fará muito melhor que as ciclovias, a peões e a ciclistas, serão medidas muito mais urgentes como a acalmia de velocidade, a regulação efectiva do estacionamento e a proibição absoluta de estacionamento selvagem, nivelamento de passeios e elevação de todas as zonas de atravessamento, restauro dos passeios de forma a que seja possível andar a pé, com um carrinho de bebé ou cadeira de rodas.

As minhas excepções são uma ciclovia no eixo Liberdade/Fontes Pereira de Melo/Republica; Alcântara/Algés; Martin Moniz/Relógio; Baixa/Parque das Nações; na Marginal da Linha. Que dizer das ciclovias de Telheiras e de Benfica? Voltamos à mesma conversa do excesso de liberdade dada ao carro. Ambas são em bairros e os bairros não precisam de ciclovias para nada! A não ser que Telheiras e Benfica sejam bons mercados eleitorais… Tenho muita curiosidade em ver como vai resultar a requalificação do Bairro do Charquinho, em Benfica, já que finalmente alguma coisa de verdadeiramente relevante pode ser iniciada. É um projecto que mistura coragem política com envolvimento das populações mas sobretudo uma verdadeira transformação da estrutura. Vai sair caro em tempo perdido, o dinheirão que se tem gasto em meter ciclovias onde mal cabe um passeio, a fazer percursos que mais se assemelham às gincanas políticas dalguns autarcas. Apesar do fervor tantas vezes visto nas discussões que as ciclovias geram entre facções do activismo a pedal, as ciclovias têm sido pouco mais que uma artimanha para pescar votos e conseguir a simpatia dalguns militantes da causa ciclista.

HET IS AL OVER DE RIJWIEL *

Posted in cycle to know with tags , , , , on 1 de Dezembro de 2012 by Humberto

rciclaCada um tem as suas paixões. Vamos coleccionando, acumulando, trocando de paixões e assim vamos vivendo: apaixonados. Umas paixões são tão gigantescas e arrebatadoras que nos cegam, podendo até fazer esquecer outras. Temos de certeza dentro do corpo um órgão, como o fígado ou o estômago, onde guardamos as paixões. Nesse apêndice que teima em esconder-se ali por detrás do coração, cabem as nossas paixões todas. Nuns será maior, noutros mais acanhado mas é aí que vamos arrumando as paixões. As paixões às vezes, de tão novas e indomadas, saem a transbordar do saco das paixões. Apertam o coração, sufocam os pulmões e é aquele aperto no peito, respiração ofegante, nó na garganta como só os apaixonados sentem. Tudo nas paixões é bom. Mesmo quando é mau, é um mau-bom. E isso é o bom das paixões!

Amadurecemos e as paixões amadurecem em nós ou vice-versa que sobre isto ainda não cheguei a uma conclusão. Há paixões que nos vão conquistando aos poucos, lentamente. Outras haverá que nos colhem com tal estrondo que num instante mudam(os) o rumo do Mundo. Há paixões que entram em nós sem querer e só nos abandonam montadas no último suspiro. Cada qual é um e as suas paixões. É os seus amores, e ninguém as tem de igual modo. No fim de contas somos pouco mais do que a maneira como vivemos as nossas paixões. Assim como o sangue que nos corre nas veias, as paixões são só nossas e sentimo-las cada qual à sua maneira. Por isso é que as bicicletas são adoradas de tantas maneiras e feitios, tantas como ciclistas houver.

As paixões alimentam-se por dentro e por fora e há sempre alguém disponível para servir um apaixonado. É ver a quantidade de lugares onde hoje se pode apreciar, avaliar, experimentar, comprar, alugar, amanhar bicicletas. À medida que foi crescendo a quantidade de apaixonados pelas bicicletas, os lugares dedicados a eles e a elas -apaixonados e bicicletas- foram deixando de ser montras frias e homogéneas, onde as bicicletas eram arrumadas como gado barato, para se transformarem em espaços amplos, limpos, bem iluminados, chiques. As bicicletas foram ganhando mais e mais estatuto de objecto único pela cor e as suas formas valorizadas, os detalhes realçados. Acessórios simples como uma campainha é encarada como um autêntico anel de brilhantes no dedo da amada -para quem gosta de anéis, claro. Cestos de vime são importados de terras longínquas porque são os melhores e a nossa bicicleta só merece o melhor!

A bicicleta é uma paixão e as paixões também são às vezes modas. Em Lisboa já podemos entrar num café com bicicletas penduradas nas paredes e outras dobradas em prateleiras. Já é possível sentarmo-nos numa mesa rodeada de acessórios de bicicleta com um quase apelo sexual e bebermos um café vulgar. Em Lisboa já se encontram à venda algumas das mais emblemáticas marcas nascidas com o boom da paixão pela bicicleta que vai arrebatando corações por este mundo adentro. Finalmente já não somos obrigados a viver com uma bicicleta todo-o-terreno a vida inteira! A identidade da bicicleta passou a não estar apenas ligada à sua juventude mas sobretudo ao estilo que transporta. Literalmente.

Ainda há meia dúzia de anos, mesmo nos encontros e passeios urbanos de ciclistas, a grande maioria de bicicletas presentes tinham sido compradas em lojas de desporto e os seus ciclistas eram pouco mais que amantes da tecnologia e quase todos obcecados com a magreza -pelo menos com a magreza das suas meninas. Foram os tempos do domínio dos valores da competição desportiva, caminho mais fácil encontrado pelos fabricantes (que vivem de fabricar e alimentar algumas paixões) para tirarem à bicicleta o seu aspecto mais infantil, efemininado quase. Não quero com isto dizer que a Cannondale SuperSix EVO ou a Trek Super Fly são desprovidas de carácter ou incapazes de provocar paixões. Acho é que a coisa será muito menos platónica. Deslizar por um trilho sentado em cima de uns bons milhares de euros tem muito de carnal. Tem que ter! Claro que o tacto ao carbono mais rígido, o som da corrente a rolar com precisão aeronáutica pelos carretos, a souplesse do par bailador estrada fora, podem ser vividos com verdadeira paixão. Mas também sabemos que daqui a alguns meses, seremos servidos com novas Super-qualquer-coisa muito mais tudo que a Evo ou a Fly.

O movimento Cycle Chic e o Passeio de Bicicletas Clássicas são autênticos chás dançantes dos tempos actuais. Lugares onde vamos passear a nossa paixão e onde o estilo passou a ser traje de etiqueta. Qualquer estilo, desde que permita que a bicicleta seja exibida como mais um acessório, ou mesmo como O acessório, condicionando o conjunto homem/máquina mas sem o transformar em algo de totalmente excêntrico, (a)berrante. Até porque há momentos para diferentes paixões. Por exemplo, não passará pela cabeça do mais saudoso amante das pistas nevadas que, só porque é inverno e está a cair neve no Alto da Torre, ir de esquis passear para a Baixa. A paixão por pedalar tem tudo a ver com a bicicleta. Digamos que o prazer de pedalar pelas ruas da cidade pode ser vivido não importa o que se tiver no meio das pernas, mas há sensações de prazer diferentes de acordo com a montada.

Claro que o alvo da paixão pela bicicleta é a própria bicicleta. Ninguém pedala virtualmente sem um determinado quadro onde estão montados uns componentes e não outros. A bicicleta é que importa. É por ela que pedalamos porque sem ela somos apenas peões. É a bicicleta que nos transforma e transporta. São as características da bicicleta que nos definem enquanto ciclistas. É a personalidade da bicicleta de cada um que o enquadra num tipo específico de utilizador de bicicleta, que o faz membro de uma tribo ou de outra ou de nenhuma. É a bicicleta que nos leva a escolher a loja ou até a forma de comprar. Fazemos uns amigos e não outros de acordo com a bicicleta que pedalarmos. Tudo tem que ver com a bicicleta.

Podemos viver a vida inteira apaixonados sem nunca perceber com funciona o objecto da nossa paixão. Alguém percebe os homens ou as mulheres? Percebem onde quero chegar? A maioria dos apaixonados pelas bicicletas não fazem ideia como se ajusta um desviador ou qual a diferença entre travões v-brake e cantilever mas isso não os impede de pedalar ou sequer gostam menos de bicicletas. Gostam é de forma diferente. E nunca vão poder gostar tanto como se… A bicicleta pode perfeitamente ser apenas mais uma coisa nas nossas vidas, até mesmo mais uma das paixões que levamos no tal saco das paixões mas nesse caso nunca chegará a moldar-nos a forma. Para estes de nós a bicicleta será sempre uma peça inteiriça, mais ou menos decorada, mais ou menos atraente, mais ou menos prática. Desde que seja capaz de nos fazer apenas rodar o olhar ou ao ponto de nos virar a cabeça e mudar-nos o pensamento -o dia-a-dia? já a bicicleta cumpriu grande parte da sua função. Porreiro!

No entanto a bicicleta é muito mais que isso. Houve quem a tenha classificado como a maior das invenções e deve ter tido muito boas razões para isso. A simplicidade da bicicleta contrasta com a quantidade de detalhes históricos em que nos podemos perder. Desde as primeiras tentativas de fazer andar um par de rodas postas em linha, até às mais radicais variações permitidas pela tecnologia actual, a bicicleta é um mundo. Basta entrarmos em qualquer loja para ver a parafernália de peças e acessórios que podemos comprar. Alguns embalados como se fossem bombons outros com preços que mais parecem jóias. Últimos modelos de tudo e mais alguma coisa, o derradeiro design e a melhor tecnologia são anunciados qual santo graal. Um mundo onde a paixão é tudo menos casta!

Todos os móveis à venda em antiquários já foram novos um dia e ganharam, pela forma como resistiram à passagem do tempo, todo o valor que custam. Todos os objectos começam a envelhecer no momento em que são feitos e as bicicletas não são excepção. Poucos são os móveis, assim como raras as bicicletas que chegarão a ter estatuto de antiguidade, mas há monos que podemos sem arriscar muito, dizer qual o fim que terão. Até há pouco tempo não se encontravam bicicletas antigas à venda em bom estado, o que é normal já que as lojas preferem alimentar a paixão duma maneira digamos, lucrativa. Normal e compreensível. Para a maior parte dos apaixonados pela bicicleta, as coisas estão bem assim e nem podiam ser doutra forma. Ou será que podem?

Felizmente que podem! E o Vítor está disposto a provar isso mesmo na nova -verdadeiramente nova- loja que abriu em Algés. Com contentores de experiência e paletes de bicicletas inteiras ou às peças que trouxe da sua outra loja de Amesterdão, o Vítor abriu a primeira loja de bicicletas para quem gosta da bicicleta no seu todo, na sua essência. Para quem tem uma paixão maior por bicicletas. Para quem gosta de falar bicicletas. Para quem quer construir uma bicicleta, como dizem os ingleses, desde o rascunho. Para quem quer ter uma roda única na sua fixie. Para quem quer uma cor única ou um quadro Reynolds por medida. Para quem sonha pedalar uma senhora holandesa, pesada e com apenas três mudanças ou quer somente ver de perto uma Batavus. Uma verdadeira loja de bicicletas, cheia de órgãos usados mas ainda com muita vida para darem à nossa alma! Os apaixonados pelas modernas BTT não precisam fazer toda a Marginal mas quem procurar uma rígida old school para os trilhos da Arrábida, uma estradista em aço Colombus que já conheceu mundo ou uma BMX verdadeira, é na Rcicla que se vai perder de amores.

Poucas vezes aqui me senti a pisar o risco da publicidade gratuita e nunca aceitarei a outra, um pouco até à revelia da normal e também legítima união que existe entre a defesa da bicicleta e lojas ou marcas que vivem de e para a paixão pelas bicicletas. A Rcicla não é mais uma loja de bicicletas a fazer um esforço de originalidade para conseguir melhor vender as coisas do costume. A Rcicla é um conceito maior que um espaço comercial, onde se vai trocar dinheiro por qualquer coisa. Na Rcicla podemos até ver o nosso problema resolvido sem nunca gastarmos um euro. Há duas sensações comuns e frequentes quando entramos numa loja de bicicletas: sermos olhados como um porta-moedas recheado ou com tal indiferença que pomos em causa quem faz um favor a quem. Na Rcicla é diferente. É mesmo diferente! Na Rcicla o nosso problema é só mais um desafio.

A Rcicla não é um hotel de cinco estrelas onde levamos a nossa paixão uma vez na vida. A Rcicla é toda uma forma de viver a paixão, todos os dias. A Rcicla é uma escola para conhecermos a nossa paixão e nos conhecermos a nós mesmos. À Rcicla não se vai mostrar, vai-se para ver, para partilhar. Vai-se para discutir BikePolo e a felicidade. Na Rcicla há bicicletas para todos porque qualquer um pode fazer a sua própria bicicleta, como se fosse um alfaiate de bicicletas. Ali não há café nem queques mas há alguns dos melhores lugares para umas bifanas, b’jecas & afins. Não há carros por perto e há espaço com fartura para os miúdos correrem. Há o comboio à porta e autocarros de várias cores. Há vendedores de castanhas e às vezes um mercado do livro. A Rcicla é toda bicicletas. Finalmente abriu a Rcicla!

* É tudo sobre a bicicleta.

HÁ DIAS ASSIM

Posted in cycle to work with tags , , , , on 19 de Abril de 2012 by Humberto

Há dias assim. Sai uma pessoa de casa para enfrentar um segunda-feira já bem entrada no dia, monta na bicicleta e faz-se ao caminho com o sol pelas costas, quentinho. A nortada promete acompanhar a costumeira viagem e a temperatura é perfeita. Chegado ao túnel da praia, o mar ao fundo, a cadência descontraída, a maresia, a campainha que perdeu a mola e tilinta a cada buraco do caminho. A vida é tão simples em cima do selim!

Lá em cima os carros passam apressados, como que parecem fugir, como se tivessem medo de se deixar aprisionar pela beleza da paisagem. Tão perto e tão longe. Passo pela marina nova de Oeiras onde belos barcos embalam o mar e sonham com viagens por mares nunca navegados. Um cachorro leva a dona pela trela e um par de patins desliza em ritmo de câmara lenta.

Da curva surgem duas rodas a par, duas fardas iguais, dois agentes da autoridade. Um casal desvia-se das três bicicletas e ainda ouve a pergunta “já viu aquele sinal”. Outra bicicleta que pára e a mesma pergunta. O atlético corredor poderia levar nos auscultadores a informação de trânsito “congestionamento na Marginal” mas apenas se desvia. Ao fundo outro casal pára a comentar a cena “olha aquele já está”. Um par de olhos verdes em passo estocado fita-me tentando descortinar quem é o mau da fita.

Que ainda não estamos a multar mas que vamos começar”. “Que é proibido“. “Há sinais em todas as entradas”. “Já “houveram” acidentes graves, até com uma senhora grávida”. “Pois, terá de ir por… não sei, pela estrada”. “São 24 euros e 90 ou lá que é e mais 30 se não tiver o bê i e mais metade por causa do…”. “Pois pois que a bicicleta é um veículo e tem de usar capacete que vem no Código”. “Ai vem vem!”. “Está aqui, quer ver?”. “Não tens aí o Código? É que ‘tive a formatar isto e desinstalei o Código”.

Neste palavra-puxa-palavra claro que houve o “então e onde fica a minha segurança”. “Eu sou responsável apenas pelos meus actos”. “Qual é a diferença entre o antes de Abril e o depois de Abril”? “E quem fiscaliza a velocidade ali em cima”? “E o aumento de bicicletas”? “E os turistas e a imagem do país”?  “Capacete obrigatório? Olhe que não senhor agente, olhe que não”. “Isso é um Galaxy“? “Não tem internet“? “Ah ok, não é da polícia, é seu”.

Por fim o homem escreveu o meu e-mail no tablet espanhol barato e eu ganhei a promessa que me vai chegar o artigo do tal Código onde consta a obrigatoriedade de usar capacete quando conduzimos o veículo bicicleta. Calhando o Governo já alterou o Código da Estrada seguindo recomendações surpresa. Calhando os agentes estavam apenas equivocados. Calhando eu vivo num país onde tudo está sempre a começar. Calhando o e-mail foi parar ao filtro de spam.

Enquanto a conversa com o par de fardas durou, mais por militância minha que por convicção deles, foram admoestados os ciclistas que entretanto passaram. Todos perigosos radicais, com o ar mais ameaçador que se pode imaginar em cima duma bicicleta. Todos desejosos de serem escorraçados para o asfalto seguro da Marginal. Todos aliviados por nunca mais ali poderem pedalar! Todos orgulhosos das ordens e da autoridade que escrupulosamente zela pela nossa segurança… Epá, ‘pera aí… então eu nunca mais vou passar ali? Então quer dizer que já não vou parar numa daquelas esplanadas e beber uma imperial. Aquela gente dos bares vai perder clientes? Querem lá ver que isto anda tudo ligado?

Imaginem a seguinte situação: estão a ver aquela rua na Baixa de Lisboa que começa na Praça do Comércio, aquela com o arco? Sim essa, totalmente pedonal, a Rua Augusta. Agora imaginem que a polícia a vigia de carro. Estão a ver? Vigiar uma rua pedonal de carro? Pois é o que a PSP faz no passeio marítimo de Oeiras. Um passeio pedonal, onde não podem circular bicicletas, a policia faz vigilância de? Bi-ci-cle-ta! E andam aos pares e ainda por cima a par! Estão a ver?

Ontem foi dia de seca no aeroporto à conta do atraso do voo de Bilbo. Normalmente nestas situações começo a ter alucinações ao fim duma hora. Bem sei, estou a perder qualidades. Ontem a coisa foi grave, deu-me para ver chegarem e partirem alegres passageiros que se deslocavam de bicicleta. Poucos táxis, alguns autocarros e nenhuns carros. A maioria das pessoas chegavam de bicicleta ao aeroporto, em todo o tipo de bicicletas, eléctricas, dobráveis, singles, tandem, atafulhadas de bagagem, impecáveis! Iam e vinham por ciclovias perfeitas.

Mas quando a senhora conseguiu finalmente tirar o carrinho da bagagem de cima do meu pé, acordei deste desvario. Voltei a focar na realidade enquanto duas Koga passavam do outro lado do passeio carregadas com alforges ávidos de aventura. Ainda atravessei a estrada a correr mas acho que já não me ouviram quando gritei a pleno plumão: keep away from the sea in Oeiras!

CICLISTAS MARGINAIS

Posted in cycle of sighns with tags , , , , , on 14 de Abril de 2012 by Humberto

Existem junto das entradas do passeio marítimo de Oeiras, na Marginal, uns sinais colocados pela Câmara Municipal condicionando, proibindo, a circulação em bicicleta. Sinais que são das coisas mais estúpidas que uma Câmara já fez! A de Oeiras achou que tinha de limitar o acesso a quem pense em ir de bicicleta para a faixa ribeirinha, por alegadas razões de segurança. Para evitar acidentes entre quem por lá caminhe e bicicletas, a CMO proibiu o acesso a velocípedes. Repito: é uma decisão estúpida sem qualquer sentido de justiça e perfeitamente irresponsável! A bicicleta é um veículo de passeio mas também é um veículo de transporte. Um cidadão pode usar a bicicleta para dar um passeio na zona ribeirinha de Oeiras e pode usar a bicicleta para se deslocar passando por essa mesma zona. Um munícipe pode chegar lá com a bicicleta em cima do carro, descarregar a bicla e dar por ali umas pedaladas ou pode ir até lá a pedalar desde casa. Uma pessoa pode ir sozinho ou levar os filhos de qualquer idade, a mãe, a avó, o vizinho ou quem quiser e ir pedalar junto ao rio.

Nos trajectos que um cidadão percorre no concelho de Oeiras quantos perigos enfrenta? Quantos atropelamentos ocorrem em Oeiras provocados ou sequer envolvendo bicicletas, por dia? Quantos cruzamentos, quantas ruas há no concelho de Oeiras sem passadeira? Quantas ruas há sem passeios? Quantos automóveis estão neste momento -em qualquer momento- estacionados em Oeiras de forma ilegal, pondo em risco a segurança dos utilizadores da via pública? Quantos automóveis são multados diariamente em Oeiras por velocidade excessiva ou mau estacionamento? Quanto gasta a CMO em arranjos de passeios devido aos danos causados pelo estacionamento abusivo? Quantos acidentes na via pública têm lugar em Oeiras por falhas de segurança?

Se a circulação de pessoas, porque é disso verdadeiramente que se trata, tem de ser limitada no passeio da Marginal em Oeiras, evocando questionáveis razões de segurança,  porquê só a quem quer circular de bicicleta? Então e quem escolher calçar um par de patins? Ou for de trotineta? Ou levar cães e ainda por cima com aquelas trelas extensíveis? E quem empurrar uma cadeira de rodas? E não serão os calções curtos de jogging um atentado à segurança cardíaca? Independentemente da perigosidade efectiva que são os eventuais danos causados numa criança pelo impacto com uma bicicleta circulando ainda que a muito baixa velocidade, será proibir a circulação em bicicleta a solução? E o que dizer do horário? De Abril a Outubro pode-se pedalar entre as 8 da noite e as 9 da manhã. Porquê? Porque não entre as 5 e as 7 da manhã e entre as 17:45 e as 22:17? Porque apeteceu ao empregado do Isaltino escrever aqueles algarismos e não outros quaisquer? E qual a razão para a exclusão permitir crianças até aos oito anos? Quer dizer que os pais das crianças constituem um perigo e os petizes não? Será que uma criança de oito anos não consegue pedalar depressa nem nunca poderá provocar um acidente?

No meu commuting cruzo-me com todo o tipo de ciclistas, desde o bike ninja ao licrafanático, a menina na bicicleta com cestinho e a velhinha pasteleira, o ranger da bicicleta de supermercado e a ligeireza da dobrável very english. Pessoas de colete reflector e capacete e outros de blazer e cycle cap. Uma coisa arrisco concluir: a atitude na “estrada” de quem pedala tem tudo que ver com o aspecto gráfico do conjunto homem-máquina e sugiro até um ditado, para constar num futuro dicionário, do tipo “diz-me como te vestes, dir-te-ei como pedalas”. Em paralelo, o aumento significativo de ciclistas urbanos a pedalarem em circuitos até há pouco exclusivamente utilizados por bêtetistas pouco convictos, faz com que os ciclistas mais desportistas se comecem a sentir assim a modos que deslocados. Realmente enfiar o corpito dentro duma fatiota plastificada e no mínimo de gosto duvidoso para ir pedalar para a Baixa é, direi curioso… Em Monsanto, no Jamor ou à volta da albufeira do Alqueva, ainda vá, mas na ciclovia do Tejo!?

Quero com isto dizer que não é preciso proibir -fosse isso possível! um determinado tipo de roupa para prevenir determinado tipo de comportamento. Sim, é de comportamento que estamos sempre a falar nos blogs sobre bicicletas, ou não é? Não é por proibir o excesso de velocidade na auto-estrada que o pessoal vai passar a poupar no combustível, ou é? Com sinalética própria, algumas marcações no pavimento e uns cartazes com umas dinamarquesas giras (porque não?), seria perfeitamente possível adaptar o trajecto, agora vedado aos ciclistas, à sã convivência de todos, de forma normal e civilizada. Se esse tivesse sido o caminho, teria a CMO dado prova efectiva de preocupação com a segurança dos seus munícipes e de todos os que visitam o passeio marítimo de Oeiras, independentemente da forma como se fazem delocar. Demonstraria bom senso no pensamento, inteligência no estudo e vanguarda na acção.

Uso quase diariamente o passeio de Oeiras, na medida em que tenho por principio utilizar as vias que me permitem circular com maior segurança. Adapto a minha velocidade de acordo com a via e com o trânsito, seja ele pedonal ou motorizado. Poder pedalar ao longo da água é não só um prazer individual pela paisagem que me acompanha mas também porque me cruzo com pessoas que partilham sentimentos semelhantes para com aquele espaço. A bicicleta é um veículo que, ao contrário do automóvel, promove a interacção e da integração. A Marginal é um lugar privilegiado da foz do Tejo. Percorrer toda a extensão desde Algés até Cascais ao longo do rio já mar, seja de carro, bicicleta ao a pé, permite desfrutar de boas vistas em lugares muito bonitos e agradáveis. É um caminho que se pode fazer a qualquer hora do dia ou da noite, em ambas as direcções e com qualquer tipo de tempo, sempre com prazer.

A atitude da CMO promove a associação entre insegurança e bicicleta. Faz com que alguns cidadãos -uma minoria, é verdade, que se cruzam comigo  me olhem de lado, com cara feia, como que dizendo “oh palhaço, não sabes que não podes andar aqui”. Esta proibição estúpida e injusta é mais uma prova que muitos autarcas, apesar de acções pontuais de relativo impacto mediático,  continuam ancorados numa arquitectura de pensamento contrária aos interesses da bicicleta. Proibir as pessoas de pedalar não resolve nada. As pessoas devem não só ser autorizadas a pedalar como devem ser incentivadas a pedalar. Pedalar aproxima-as umas das outras e do espaço que partilham. Torna-as mais parte do espaço comum. Pedalar torna-nos mais responsáveis para com o ambiente. Pedalar torna-nos melhor cidadãos. Perceber isto é meio caminho para não proibir ninguém de pedalar.

Não são umas ciclovias abandonadas e ineficientes ou meia dúzia de horas de Marginal sem carros que resolvem problemas estruturais e contribuem para uma melhor mobilidade no concelho de Oeiras. Todas as semanas aumentam as razões para experimentar ir para o trabalho de bicicleta na razão proporcional do aumento dos combustíveis e multiplicadas pelo preço-dos-transportes. A bicicleta está aí para ficar e proibir é não estar a ver um boi à frente do nariz! Será o caro leitor um commuter em Oeiras ou na Linha de Cascais? Utiliza o prezado leitor o passeio marítimo apesar da proibição? O que acha que podemos fazer para corrigir a situação?

DE BICICLETA ATÉ AO FUTURO

Posted in cycle of live with tags , , , , , , , , on 7 de Abril de 2011 by Humberto

A bicicleta entrou na minha vida no dia em que o meu pai me levou para onde é hoje o Parque das Nações e me deixou em cima duma Vilar vermelha, a minha primeira dobrável, num estradão alcatroado, bem perto dum enorme cemitério de material de guerra usado no ultramar. Nessa estrada com cheiro a rio e a lodo tive a minha primeira batalha com as duas rodas e a força de gravidade. Uma rodinha montada do lado direito ajudou-me a manter o equilíbrio nas primeiras pedaladas, lançado por uma voz de incentivo e dum momento para o outro a mão que segurava o selim já lá não estava e um magnifico mundo estendia-se à minha frente.

Depressa a Vilar rumou ao sul para a casa dos avós onde ficou até hoje a chorar saudades de tanto e de tantos. O corpo cresceu-me e ganhou uma Esmaltina, verde com mudanças e guiador de corrida, comprada no Areeiro. Foi o tempo das corridas à volta do quarteirão e das primeiras quedas a sério mas foi a Esmaltina que me permitiu alargar os horizontes tantas vezes bem para além do salvo conduto familiar. Passados esses gloriosos tempos da meninice e durante demasiado tempo a bicicleta foi posta de lado. Demasiado tempo!

Até que resolvi trocar a cidade capital pelo Porto. Eram os tempos dourados da internet e do ecrã do computador saía muito e saíam também bicicletas. Lance Armstrong vestia camisolas amarelas como quem abre garrafas de champanhe e por todo o lado começaram a surgir bicicletas de montanha. Numa viagem de visita a Lisboa fui convencido por um compincha de outra pedaladas a dar uma volta de ginga. Foi depois desse regresso ao pedal que decidi comprar uma bicicleta já que a velhinha Esmaltina tinha ficado pequena, mas recusava-me a comprar uma BTT. Não queria os pneus largos nem aquele ar de jipe porque simplesmente não iria andar no monte. Queria uma híbrida que procurei, procurei e não encontrei. Na verdade existiam umas lojas que vendiam umas marcas que as tinham em catálogo mas… teria de encomendar sem testar, sem ver, pagando logo um sinal. A sorte é que do Porto a Vigo é um saltinho!

Se já sabia que na Galiza havia bom peixe e melhor marisco, fiquei também a conhecer boas lojas de bicicletas com modelos em exposição que não eram vendidos por cá. E com a diferença do IVA e o mercado e as diferenças do costume, o preço lá era mais baixo, certa sexta-feira cruzei o Minho de regresso a casa com a barriga cheia de percebes e uma bicicleta desmontada na bagageira. Com algumas alterações e acrescentos, esta ainda é a minha bicicleta do dia-a-dia. A essa loja fui entretanto buscar uma de montanha quando as suspensões totais ficaram acessíveis e a vontade de desbravar caminhos pediu uma atitude mais radical.

O regresso ao sul fixou-me residência na linha de Cascais e depressa as agruras da vida motorizada pela Marginal deixavam-me os nervos em franja. A decisão de tirar a versátil Trek da arrecadação e tentar o percurso até Carnaxide foi natural. Apesar do esforço necessário para vencer a subida por Miraflores me ter feito duvidar da minha própria sanidade mental a teimosia foi maior. Nessa altura as bicicletas pagavam bilhete no comboio aos dias de semana, o que encarecia e muito o preço das viagens. Mas como o que importa não são os problemas mas as soluções que lhes damos, decidi comprar a primeira dobrável, que como era considerada bagagem pela CP, não me custava bilhete a ainda tinha a vantagem de me permitir conjugar melhor a mobilidade familiar.

Quando a CP deixou de cobrar bilhete de bicicleta, criou um esquema de horário para o livre transporte de velocípedes a bordo mas que não me afectava porque a Dahon continuava a ter livre acesso a qualquer hora, desde que fosse dobradinha e sossegada ao meu lado. Hoje que acabaram as limitações nos comboios da linha de Cascais e porque se tornaram mais frequentes as viagens sem recurso ao caminho de ferro, a Trek voltou à liça e até ganhou recentemente um dínamo lateral para deixar de usar pilhas, mesmo das recarregáveis.

Claro que ao longo de todos estes anos, de toda esta vida, a minha relação com a bicicleta evoluiu bem mais que a simples empatia material com a dita coisa. As formas com que olhei e olho hoje para as bicicletas foram-se alterando e a importância que atribuo à mobilidade e aos problemas associados com a sustentabilidade de meu estilo de vida é hoje infinitamente maior do que quando esta aventura começou à beira Tejo. Neste texto cabe a lycra e os pedais de encaixe, cabem as suspensões auto-bloqueantes e os travões de titânio, as intermináveis polémicas e seus equívocos sobre o uso do capacete.

Cada um pedala a sua bicicleta e a forma como a pedala deveria ser indiferente para os demais. De fatreino, de pijama, fraque ou nu (cruz credo!) o importante é que cada um considere que pode incluir a bicicleta nos planos de transportabilidade pessoal. Um dia a bicicleta vai ser equiparada a qualquer outro veículo independentemente do combustível que use. Quem sabe um dia existirão pastagens comunais para que os nosso burricos, mulas e puros-sangue de transporte se alimentem? Aconteceu há bem pouco tempo em Cuba aquando do período especial, no início da década de noventa do século passado.

Um dia a bicicleta vai atingir por cá o mesmo estatuto de que já hoje em dia goza por outras paragens e nesse dia nós, os que já a guardamos no armário da paixões, vamos ser olhados como os pioneiros desta nova alvorada ciclopédica. Um dia os chiques e os outros serão apenas modas. E tudo isto vai acontecendo na cadência da pedalada descomprometida e feliz de quem olha para a vida por cima do horizonte do guiador da bicicleta.

ALL THE WAY RIDE!

Posted in cycle to work with tags , , , , , , , on 11 de Novembro de 2010 by Humberto

O ritual matinal foi cumprido. Pedalei até à estação da CP e apanhei o comboio. Um pouco antes das nove as carruagens já chegam compostinhas a Carcavelos e acabam de encher em Oeiras e Paço de Arcos. Caras sisudas, rostos fechados,  olhos perdidos nas notícias grátis e cabeças a transbordar de taxas de juros e equações onde a única constante é a incerteza do futuro. Há medos novos por aí que não deixam ninguém respirar um sorriso de esperança. Para onde nos estão a levar?

Eu fico-me por Algés, tomo um café no bar do turco e reajusto o selim. Sim, que hoje vim sentado num Brooks Flyer Special castanho novinho em folha. A Raleigh ganhou assento e pneus novos e veio à rua mostrar o que vale. Os pneus que a minha mais recente aquisição trouxe desde a sua terra natal eram largos demais para poder ter instalados os guarda-lamas, e de borracha de muito má qualidade. Resolvi troca-los por uns Schwable Marathon Plus de medida 25 para lhe devolver o ar original, melhor rolamento e acrescida protecção anti-furo. E resultou!

O selim de origem não é desconfortável mas as minhas costas habituadas que estão ao Thudbuster reclamavam de cada vez que me sentava nele. Resolvi investir umas massas num Brooks desconhecido mas com muito boas referências. O Flyer é um selim bastante polivalente que junta o conforto do clássico B66 com a performance do B17. O ideal para um quadro em aço a ser usado no dia-a-dia. Preferi o Special que tem os rebites mais largos e martelados à mão.

Apesar da mudança dianteira estar empenada e não ser fácil encontrar um Shimano Deore DX sobressalente, o sistema de transmissão funciona sem falhas e lá fiz a minha subida nas calmas, desfrutando do vento, do fresco, dos cheiros, dos sons, de mim. Mudar de roda pedaleira requer alguma habituação para não fazer saltar a corrente nem deixa-la a roçar, mas obriga-me a permutar mais moléculas com a bicicleta.

O dia de trabalho reservava-me uma viagem de carro longa e mais ou menos sem proveito, não fora a oportunidade de ver o trabalho do arquitecto Ricardo Bak Gordon na planície Alentejana e a garrafinha de azeite Andorinha Vintage. Nem tempo tive para provar o menu bufete que o chefe Sobral preparou para tão desmerecidos comensais…

O fim do dia estava bonito e como a ida tinha corrido sem sobressaltos mecânicos, arrisquei um regresso a casa livre de comboio. Fora da época estival a Marginal fica menos convidativa à bicicleta nas horas de commuter. Pela manhã ou é muito escura ou muito engarrafada e no regresso são sempre demasiados os motoristas nervosos e perigosos que regressam a casa muito acima do velocidade permitida. E como pedalar pelo passeio está fora de questão por razões religiosas, vou mais vezes de comboio que as que gostaria.

Mas hoje a Rali ia finalmente conhecer a Riviera da foz do Tejo: a Marginal. O sol caia sobre o azul-acinzentado do oceano salpicado de corajosos e crentes surfistas. O asfalto ainda húmido e brilhante das chuvas sento cortado pela preta lamina rolante impulsionada para a frente pela cadencia decidida da pedalada. O ar cheio e com cheiro a maresia e as nuvens altas e altivas envolviam-me em todas as dimensões. Os anormais que conduzem diariamente livre e impunemente  por esta estrada quase que me envolviam noutra dimensão. Ai as lindas orelhinhas das suas mãezinhas!…

O selim provava os créditos mostrando-se o mais cómodo de todos os selins novos que experimentei. A base é suficiente ampla para o apoio necessário e as molas conseguem aliviar o baixo relevo em que anos de tapa-buracos transformam o pavimento asfaltado. O couro castanho dourado, de tão novo e liso está ainda algo escorregadio, dificulta uma nadinha o agarre mas nada que impeça encontrar a posição de apoio correcta em cada momento da pedalada. Se é que me percebem…

Ao fim de tantos anos a pedalar numa posição mais endireitado, a D-bar vai-me questionando de cada vez que a agarro e dá-me algum trabalho a adaptar. Verdade seja escrita que já estava a chegar à praia de Oeiras quando o pensamento me levou a olhar o guiador. Não estou certo se a direcção -guiador e avanço- sofrerá alguma modificação. Estou indeciso entre um avanço com um ângulo mais aberto mantendo a drop-bar ou um guiador tipo Albatross ou Dove. Sempre com bar-end shifteres. Cool hum?…

Neste ponto da Marginal já os ouvidos se fartavam do vrum rasante, meti-me no túnel e segui pelo passeio marítimo sem olhar a proibições nem restrições. Pouca gente caminhava, alguma patinava, outra pedalava, a praia quase deserta, o mar mais próximo e o piso! ah o piso… como seria bom rolar sempre assim, suavemente.

O prazer de montar numa bicicleta clássica como a Randoneur, é imenso. Talvez desperte o mesmo tipo de sensações que conduzir um Jaguar descapotável, branco claro. A maneira como nos encaixamos e enredamos ao comando da máquina. A viagem ao tempo em que a simplicidade mandava e obedecia. Os materiais, o design, o som do “motor”, o cliq-claq-rchq da corrente, do desviador, da mudança, dão um sentido de vida que coloca a bicicleta entre as criaturas que respiram, gemem e sorriem.

CHOVER NA PRAIA

Posted in cycle of live with tags , , on 10 de Outubro de 2010 by Humberto

Na quinta, sete, tinha marcado jantar com uns colegas -na verdade alguns já não são mas é como se fossem – na pizzaria simpática da praia de Carcavelos. Havia tempo que não nos juntávamos mas desta vez tinha sido tão simples marcar o encontro e havia todas as confirmações esperadas, que me deu um certo ar de satisfação quando liguei ao restaurante. Os caros leitores não acham também que vai sendo demasiado difícil conseguir juntar pessoas à volta duma mesa?

De manhã cedo tinha tirado a bicicleta da arrecadação e saído, como todas as quintas, à feira de Carcavelos e feito o avio do costume, tomado o café com o duchese do costume -na verdade o duchese foi embrulhado e viajou de alforge para ser compartido no lar, porque os natas estavam deliciosamente queimados. De volta ao ninho, prendi a Trek com o cadeado U ao sinal de rua-sem-saída em frente ao prédio e deixei-a a apanhar ar até que chegou a hora do encontro.

Ainda não pedalava havia um minuto e já a chuva me molhava a campainha, o guiador, o guarda-lamas, o boné, as calças, os sapatos. Tinha vestido um leve impermeável por causa das coisas mas a verdade é que as pedaladas entre o viaduto da estação de Carcavelos e a passagem subterrânea da Marginal fiquei que encharcado. Apanhei a primeira molha da época.

A cabeça estava seca porque a lã de chaxemira escocesa do boné cumpriu com os pergaminhos mas as coxas estavas ensopadas, os ténis encharcados e o casaco escorria água até aos bolsos. Aproveitei a forte corrente de ar que soprava pelos túneis, baixei o descanso a meio da passagem para salvaguardar a montada e abri os braços. Ajudou. Lá fora o mar enrolava a areia e gotas fortes eram empurradas para a sombra. Sozinho na penumbra senti-me bem. Eu e a bicicleta sem testemunhas, de braços abertos sequei o casaco.

Amainou a chuva e voltei a pedalar. As mesas por onde passaram os atletas amadores e destemidos que se cruzaram comigo, estavam vazias. Terá sido a chuva que os lavou de gente? A falta de  clientela tão habitual nestes privilegiados spots, apesar dos asfaltados parques de estacionamento, simboliza bem o desperdício de recursos e revelam à luz da lua o tanto que falta fazer para dinamizar este espaço. Às vezes o melhor é pedalar para esquecer…

Uma bicicleta amarrada à entrada da pizzaria ia anunciando aos comensais que eu já esperava lá dentro. A surpresa deles surpreendia-me: Como diabo havia eu de ter ido ao jantar? Por muito tempo comemos e conversámos pinceladas dos quadros das nossas vidas. Não se falou de bicicletas nem de carros nem de passeios nem de estradas até que a chuva ofuscou a vista escura da praia e ameaçava-me com um dilúvio no regresso a casa. Ai os olhares convergiram no meu ar de indiferença. À pergunta muda do “e agora?” respondi “parece que vou ter de tomar um bom duche quente à chegada”.

Algumas das viagens que fazemos oferecem-nos inesperados contratempos, sem olhar à maneira que escolhemos para ir ao destino. O autocarro que se atrasou, o furo no pneu do carro, o Bobi que resolveu desaparecer à última da hora, o puto que nos pede para parar porque bebeu muita água, a fila na ponte, o acidente na segunda circular. Cada um que acrescente de memória. Eu atrasei-me pela chuva. Na pior das hipóteses teria voltado para trás a pedalar até ao tal duche e feito a desfeita de faltar ao encontro. Mas isso não aconteceu, pois não? Então tudo está bem.

Lá pela uma da manhã, quando a única mesa que nos fazia companhia se levantou, os quatro resistentes seguimos-lhes os passos para alivio do staff. Já na rua contaram-se mais uns dedos de conversa. Não caía água do céu e as estrelas espreitavam por entre nuvens promissoras. Sacudi os salpicos do velho Brooks e acenei um “até à próxima” por entre os estalitos da corrente. A luz da frente ressentia-se da bênção outonal mas a viagem foi seca de água e rápida de grappa. Afinal nem foi preciso tomar um duche quente.

 

RELATOS DA VIDA A DUAS RODAS

Posted in cycle of live with tags , , , , , on 18 de Setembro de 2010 by Humberto

Graças à chegada da P, a minha vida tem tido pouco de profissional e tudo de familiar. Além da licença paternal, resolvi juntar um mês de férias em atraso e ficar em casa a ver a flor a ganhar cor. A qualidade de vida é algo de muito tangível. Noites pouco dormidas, inexistência de dados adquiridos, ausência de certezas, atenção constante aos detalhes, falta de tempo para o habitual e uma habitual falta de tempo, são as únicas constantes destes tempos magníficos. A bicicleta tornou-se noutra ainda maior constante. Tudo é feito a pedalar. O mercado, as visitas, as aulas -que essas são compatíveis com o resto- a tudo chego montado no velho Brooks.

Ontem, sexta-feira e dia de aulas, atrasei-me ao almoço. Culpas atribuídas ao molho dos bifes, à companhia do almoço e ao Ermelinda. Acabei a pedalar para a estação, meti-me no comboio a correr e pedalei mais um tanto até à escola. Ainda tive tempo para parar na tasca do costume e beber prometido café para compensar a pimenta do molho. “-Então hoje veio de bicicleta. -Atrasei-me, foi o que foi. Que nestes dias não preciso vir nela. Entre a casa, o comboio e a escola, até aproveito para andar a pé.”

Ao regressar, enquanto a luz reflectida no Tejo franzia os olhos aos passageiros do costume, lembrei-me da sorte que é não depender de ninguém para ir de um lugar a outro. Ali estava, de pé meio apoiado no pedal esquerdo e a ler, mas podia sair a qualquer momento e continuar a pedalar. Podia a linha ficar interrompida por um acaso. Podia a electricidade faltar e as locomotivas ficarem quedas. Podem as políticas neo-liberais desencadear greves e boicotes. Pode a gasolina ser vendida nas ourivesarias! Ou pode simplesmente dar-me para sair na próxima e dar uso aos pedais! Estava eu entretido com estas ideias, motivadas quiça pelo canto do olho preso a uma notícia dum gratuito, quando acordei para o chamamento da Marginal, do pôr do sol prateado visto pelo fundo dum copo de imperial. Tudo mesmo a calhar antes do jantar. Um privilégio!

Quando vou a Lisboa e o destino não me obriga a levar a bicicleta, mesmo que o trajecto seja feito maioritariamente de comboio, ter a bicicleta comigo, dá-me uma enorme sensação de segurança e independência. A bicicleta é um veículo libertário. Andar de bicicleta significa escolher um caminho mais calmo, ir mais devagar, desfrutar incomparavelmente da viagem, não poluir, não consumir, fazer exercício físico, manter a cabeça ocupada, mas sobretudo exercer um direito de forma absoluta: a liberdade individual à mobilidade.

SONHO DE NOITE DE VERÃO

Posted in cycle of sighns with tags , , , , on 29 de Setembro de 2009 by Humberto

A margem direita da foz do rio Tejo e a frente de mar a ela contígua é gerida desde o aconchego de muitos gabinetes. As câmaras de Loures, Lisboa, Oeiras, Cascais e a Capitania do Porto de Lisboa têm a seu cargo muitos quilómetros. Nestes públicos organismos labutam decisores políticos e responsáveis técnicos pelos destinos de tão belos lugares. Aqui se olha hoje para o Concelho de Cascais e a capacidade que esta autarquia tem tido nos últimos anos de estender tapetes de cimento e asfalto naquilo que é o ex libris do concelho, as praias e arribas ao longo da Marginal.

Ponhamos os olhos, por exemplo, na praia de Carcavelos, o seu extenso areal e a faixa entre a Marginal e a praia. Façamos o exercício de nos lembrarmos em quantas cidades se pode encontrar semelhante mini-paraíso. E digo cidade porque ista anda tudo ligado e na verdade Lisboa está ali ao lado e em menos dum credo estamos em Belém a saborear uma bica e um Pastel de Nata. Mais de um quilómetro de praia, ainda para mais larga de areia. Um mar que ora piscina, ora lugar de culto para surfistas. Bares e esplanadas para todos os gostos. Restaurantes com vista para um pôr de sol que dura todo o ano.

Quando a C. M. de Cascais resolveu “requalificar” a praia e área envolvente, quais foram as suas opções? Como aplicou os largos milhares de euros que destinou à empreitada? Facilitou os acessos? Aumentou a zona de passeio? Criou novos espaços onde se possa parar, sentar, ler, fora dos bares e restaurantes? Instalou parques infantis? Plantou árvores e fez mais sombras? Melhorou os acessos do lado de terra e pintou mais passadeiras? Reformou os túneis pedonais e facilitou a acesso às bicicletas com parques seguros?

Claro que com estas perguntas pretendo afirmar o que, em minha opinião naturalmente, não foi feito. Bem noto, quase diariamente, o que foi feito, mais uma vez em minha opinião, mal. E é por isso que acho ser a praia de Carcavelos um bom exemplo de como se faz tanto mal. Um exemplo de como a CMC olha para a faixa de costa do seu concelho, e fiquemos apenas pela virada a sul. Do quão fácil é afinal, se dúvidas restassem, algarvernizar o país.

Foi requalificado o areal, despejando toneladas de areia e criando assim uma melhor e maior praia para estender a toalha, pintaram, revestiram, muraram e fizeram mais escadas de acesso à areia. Reformaram balneários e instalações de apoio. Foram limpos de tags e graffitis os túneis pedonais, (esforço inglório pois nada mais apelativo que uma parede limpinha para os amigos das gravuras rupestres). Tudo obras de manutenção necessárias e bem vindas.

E como foi a intervenção estrutural? Aquela que de hora em diante define e condiciona a nova conjuntura. Optou por “afunilar” o passeio, quase conduzindo quem por ali anda até às esplanadas e bares para, supõe-se, consequente consumo. Proporcionalmente entregou-se muito mais espaço ao carro que às pessoas, desrespeitando o plano de ordenamento da orla costeira que obriga retirar do lado mar da Marginal todos os parques de estacionamento.

Estendeu um enorme tapete de asfalto, sem qualquer tipo de ordenamento, sem marcações, destinado ao estacionamento mais anárquico que se possa imaginar. Cabem centenas de carros de outros tantos automobilistas preguiçosos, já que segundo a CMC, não fora a facilidade de estacionamento à porta e ficariam os bares e restaurantes privados do seus clientes, incapazes que são de andar a pé. Só assim se compreende a opção, pois à praia, como se vê no Verão, chega gente que deixa o pó-pó bem longe da toalha.

Basta uma ligação à internet e alguns segundos de espera para se poder, através do Google ou serviço semelhante, constatar a existência de um enorme parque de estacionamento mesmo do outro lado da estrada, dispondo de acessos à  praia pela superfície e por baixo da Marginal. Por uma fracção do valor gasto nas obras aqui criticadas, teria sido possível melhorar as condições dessa área e torna-la mais apelativa e acolhedora (se é que um parque de estacionamento pode ser alguma destas coisas…) aos potenciais clientes (ah!).

Por muito atraso que se produza, por muitos pequenos interesses egoístas que se privilegie, um dia os carros vão mesmo desaparecer da praia de Carcavelos. Desaparecerão porque não pertencem àquele lugar, não fazem lá falta, porque usurpam chão cada vez mais raro, transformando-o numa zona seca, morta. Por muito que isso possa custar ao nacional egoísmo bacoco, um dia todo aquele espaço vai ser preenchido por coisas úteis e será finalmente entregue a quem dele faça bom uso e o merece: as pessoas, nós todos! Nesse dia, até os condutores de automóvel e os empresários da restauração ficarão a ganhar!

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