Não estive presente no IX Congresso Ibérico da Bicicleta e a Cidade. Tive acesso às conclusões pelo documento que a Federação de Cicloturismo, organizadora em parceria com a congénere espanhola ConBici, gentilmente me enviou. O que sei do que se passou na Murtosa resume-se a notícias da imprensa local, algumas notas nas redes sociais e uma ou duas conversas informais, para além claro está, da informação oficial disponibilizada no sitio do Congresso. Sei tanto sobre o evento e sobre as discussões que lá tiveram lugar como qualquer cidadão pode saber sem se ter deslocado à Murtosa.
As conclusões do IX Congresso estão impressas em três páginas A4 onde se resume as preocupações, ambições, expectativas, alertas e outros pensamentos da organização ibérica do encontro. As conclusões dum conclave, dum congresso são assim como uma espécie de testemunho passado pela presente edição até à seguinte. Pela análise das conclusões dos sucessivos congressos é possível ter uma ideia da evolução não só do pensamento mas sobretudo das dinâmicas que presidem ao próprio movimento. As conclusões não são o resumo das comunicações e apresentações a uma reunião como um congresso mas deveriam levar em conta o que foi dito pelos delegados. As conclusões, como a própria palavra indica, deverão deduzir, ajustar, sintetizar ilações sobre o debate suscitado e desenvolvido pelos participantes.
Avaliando as apresentações submetidas ao nono Congresso da Bicicleta e lendo as suas conclusões, ou fazendo o mesmo exercício para os outros congressos disponíveis, fiquei sempre com a sensação que o texto final se enquadra mais num documento tipo manifesto/moção/carta-reivindicativa do que em conclusões dos trabalhos. Este entendimento é um problema meu e peco seguramente por deficiente entendimento. Mas como eu sou mesmo chato, dei-me ao trabalho de ir reler as Conclusões do VII CIBC, o último a ter tido lugar em Portugal, na vila de Vilamoura no ano de 2008. Moveu-me a curiosidade para perceber a evolução da bicicleta em Portugal aos olhos dos principais interessados e, admito, uma leve sensação de dejá lu.
Nas conclusões do congresso de 2008 notava-se que a evolução da situação da bicicleta tinha “sido maior em Espanha do que em Portugal”. Agora, em 2012 afirma-se que começou a “verificar-se uma inversão nesta tendência”. Ou seja, as conclusões começam por notar uma alteração substancial e qualitativa na situação da bicicleta nos dois países nos últimos quatro anos, mas continuando a ler o documento não se encontra qualquer justificação para esta viragem. Aliás acompanhando eu à distância, pela rede, o que se passa no país vizinho e sabendo o que por cá se lavra, seria preciso Espanha parar tudo o que à promoção da bicicleta diz respeito para as conclusões baterem certo com a realidade. Admito que não esteja a ver o quadro completo mas a verdade é que não encontro na realidade nada que me faça acreditar que estamos a ultrapassar pela esquerda a bicicleta do país vizinho.
Quatro anos volvidos desde que o congresso teve lugar em Portugal não sou apenas eu que concluo que muito pouco mudou, é o próprio relator que, ao decalcar parágrafos inteiros das Conclusões de 2008, tem essa convicção. Ao ler as conclusões deste ano depois de ter relido as de há quatro anos, dei por mim a pensar na Margarida Rebelo Pinto! Copy-paste! Nem uma virgula alterada, nada: “O direito à acessibilidade deve ser reconhecido, em cada país, através das formas mais adequadas, como resposta à nova dimensão da bicicleta nas cidades modernas. Neste âmbito o acesso à mobilidade e do uso pleno da bicicleta como modo de deslocação deve estar consagrado na Constituição da República Portuguesa a exemplo do direito à saúde e à educação.” Ou “É necessária uma alteração do status quo da bicicleta. A bicicleta não é apenas um brinquedo de crianças e deve ser entendida como um veículo que deve ocupar o seu espaço na via pública.” Este tipo de afirmações, que mantêm a actualidade pelo menos durante quatro anos, são mais próprias duma carta de princípios que das conclusões dum congresso.
Algumas diferenças entre os dois textos têm relativa importância, embora sintomáticas dum certo debate que anda adiado. Se em 2008 o Congresso viu como “necessária a criação em Portugal de uma comissão cívica que inclua os utilizadores de bicicleta, a exemplo de Espanha”, na redacção de 2012 apela-se a que não lutemos “cada um para o seu lado”, porque isso “traduz-se num desperdício de energias, e em alguns casos com resultados contraproducentes”. Em quatro anos muitas coisas aconteceram no seio do movimento associativo ciclista urbano e esta clarificação da posição saída da Murtosa, que aqui é particular dos congressistas portugueses, tem seguramente a ver com as divergências entre as tendências mais activas, sobretudo em Lisboa, que podem, e há que dizê-lo com toda a frontalidade, ser encontradas por um lado na Federação e por outo na Mubi. Claro que a unidade faz a força e claro que não existe uma verdade absoluta. Há que encontrar os pontos de contacto e pedalar em frente. Duma vez por todas.
Sobre o famigerado Código da Estrada, pode ler-se no texto deste ano que mais ou menos o mesmo que foi escrito em 2008. “É urgente uma alteração do Código da Estrada português a exemplo do que está consagrado em inúmeros Códigos de outros países europeus, adaptando-o às necessidades dos ciclistas e corrigindo lacunas e omissões, numa visão de que na estrada se deve proteger os utilizadores mais vulneráveis, não os ignorando, não os segregando.” É omitida apenas uma referência comparativa aos peões e é acrescentada -sinal dos tempos- uma declaração de fé no actual secretário de estado dos transportes. Não está claro no entanto se o governante se deslocou à Murtosa para anunciar brevidade na apresentação do novo Código da Estrada ou se para anunciar as tão necessárias e esperadas alterações ao dito código. Volto a lembrar que os Partidos que suportam a actual maioria governativa derrotaram recentemente um Projecto de Lei do Bloco de Esquerda que, caso tivesse passado, teria dado ao senhor secretário de estado a oportunidade de fazer um brilharete anunciando verdadeira e inequivocamente um novo CE! Entretanto continuemos à espera…
No parágrafo sobre sistemas de Bicicletas de Utilização Pública, é novamente sugerido a sua implantação “nos interfaces de transportes e junto a parques de estacionamento dissuasores”, como “excelente opção para a intermodalidade, com benefícios na economia de tempo, de espaço e de custos.” Outra vez se cita o exemplo de várias cidades espanholas com resultados encorajadores. Referem-se os “pequenos projectos piloto” de alguns municípios lusos e anseia-se pelo protelado sistema lisboeta. A verdade é que se em quatro anos muita coisa mudou em Espanha ao contrário de Portugal onde, para além de discursos mais ou menos de circunstância e tímidas iniciativas “piloto”, nada de substancial aconteceu. E a resposta para nada de relevante ter acontecido é dada nas mesmas conclusões no parágrafo referente às ciclovias e vias cicláveis.
Também aqui em quatro anos nada aconteceu que tenha levado à alteração do texto, salvo pequenas actualizações de letra. Quando as conclusões reafirmam que “o aumento da segurança da utilização (da bicicleta) deve se feita através da redução da velocidade dos veículos, fiscalização da obrigatoriedade de cumprimento dos limites de velocidade, criação de zonas 30 e partilha de circulação”, mantém que enquanto não forem efectivamente introduzidas medidas de verdadeira acalmia de tráfego e se deixar de ver a bicicleta como uma ferramenta para essa mesma acalmia, a segurança na estrada não será implementada. Nem para ciclistas, nem para peões, nem para ninguém!
“No referente à relação entre a bicicleta e o transporte colectivo reconhecem-se nas duas nações ibéricas os claros avanços em relação ao transporte das bicicletas nos metropolitanos, eléctricos e comboios, especialmente nos subúrbios das cidades. No entanto há problemas nos comboios de longa distância, pelo que seria da maior importância que que também a esse nível fosse autorizado e facilitado o transporte da bicicleta.” Ipsis verbis! Este parágrafo volta a confirmar que, apesar de do Congresso ter atestado uma maior evolução das condições para a utilização da bicicleta, a verdade é que passados quatro anos tudo está praticamente na mesma na relação da bicicleta com o transporte colectivo…
Num salto de quatro anos foi também copiado o paragrafo que pede aos municípios para instituírem “por norma, que sempre que haja uma obra se aproveite para deixar espaço ou fazer alterações que beneficiem a utilização da bicicleta ou que pelo menos não a compliquem, como a questão da colocação de sarjetas, colocação de postes de iluminação e sinalização vertical que roubam espaço e visibilidade à circulação”. Mais uma vez relembro que a Assembleia da Republica vetou um Projecto Lei do Partido Ecologista “Os Verdes” que propunha legislar exactamente neste âmbito criando as bases para uma rede nacional de ciclovias onde muitas das norma ambicionadas caberiam. A meu ver o congresso faz mal em ignorar iniciativas como a do BE e dos Verdes, que ainda por cima nem sequer são tomadas pela primeira vez, e caso tivessem sido levadas por diante, teriam tido muito mais impacto que outras iniciativas que se ficam por palavras.
Os Congressos Ibéricos da Bicicleta e da Cidade são acontecimentos de extrema importância e têm desde 1996 contribuído para o regresso da bicicleta às nossas cidades. A FPCUB desenvolve um trabalho muito relevante na defesa dos interesses de todos que pretendem utilizar a bicicleta no dia a dia, como veículo de transporte, como meio de deslocação regular, único. Todos os que pedalamos nas cidades ibéricas devemos muito ao empenho da Federação e da ConBici e ao trabalho das suas direcções e associados. As sociedades são transformadas pela acção dos Homens e estes homens e mulheres têm agido permanente e consequentemente para transformar. Ainda que nem sempre em acordo uns com os outros, ainda que nem sempre de acordo com o que cada um de nós possa julgar mais correcto.
As apresentações feitas na Murtosa são de elevado interesse e reflectem o grau de pensamento e análise presente em ambas as sociedades ibéricas ao mesmo tempo que revelam, se dúvidas houvesse pelo menos deste lado da fronteira, pela total ausência de cobertura nacional, a total incapacidade da comunicação social para lidar com a bicicleta de forma séria. É muito recomendável a consulta disponível no sitio do Congresso às apresentações feitas. Pelo pouco impacto mediático do acontecimento teve, podemos confirmar que a bicicleta ainda não conseguiu entrar nas redacções de informação mas tampouco é com redacções plagiadas de conclusões de anos anteriores, com um baixo índice reivindicativo e com a ausência de polémica enriquecedora que se dá visibilidade a uma iniciativa com a importância do Congresso Ibérico da Bicicleta e da Cidade. A bicicleta tem que ser combativa e não se pode acomodar ao poder -qualquer que ele seja- nem servir de veículo de poder. A bicicleta tem de falar alto, exigir e apontar dedos. A bicicleta é minoritária e nunca será maioritária.
Na edição deste ano o congresso alterou a periodicidade do congresso, deixou de ser bianual e passou a anual, pelo que dentro de dois anos temos novamente um encontro em Portugal. Quero acreditar que nessa altura já teremos verdadeiros sistemas de bicicletas partilhadas a funcionar em cidades portuguesas, já terá sido alterado o Código da Estrada, já existirá um normativo nacional para a construção de estradas e infraestruturas que levem em conta a bicicleta, a Avenida da Liberdade em Lisboa já será ciclavel e os passeios caminháveis, Lisboa terá efectivamente uma rede de ciclovias e não uma rede de passeios pintados, as zonas de 30km/h serão uma realidade e o estacionamento estará ordenado. Daqui a dois anos quero crer que haverá razões para o secretário de estado de então não vá ao congresso fazer um discurso bonitinho ao mesmo tempo que deixa no gabinete em Lisboa o computador a processar formas de dificultar a mobilidade para quem pretende não depender do carro. Espero sinceramente que em 2014 se chegue a novas conclusões!

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