Costumopedalar ali prós lados da casa da Amália e apanhar amoras das silvas que ladeiam a estrada. Silvas altas e espinhosas que dificultam e muito a minúcia necessária para colher as delicadas e maduras pequenas bagas. Para as alcançar, há que enfiar as mãos, às vezes até o braço, pelo meio do arbusto e os pequenos picos ferem-me, o que acaba por dar aos frutos um sabor mais perdurador. De regresso à margem direita do Tejo, essas pequenas feridas lembram-me a bicicleta parada na berma, sobre os ramos secos, folhas e caruma. O atrelado puxado para o lado à sobra, aberto. Lá dentro, o V e a P sentados e felizes. Ele com o chapéu cheio de frutos na mão, donde de dentro vão tirando e partilhando, nos pequeninos dedos, as bagas docemente silvestres. As bocas tingidas de um vermelho arroxeado e os olhos deliciados com o mundo. Por trás destas silvas estendem-se hectares de bagas perfeitas, daquelas que nos chegam ao supermercado em cuvetes de plástico. Mas a estas não lhes falta só os espinhos.
Nunca aconteceu render-me ao BlackBerry. Apesar de achar há muito telefone ideal, com tudo o que se poderia querer ou necessitar. Mas sempre senti que faltava qualquer coisa, talvez os tais espinhos. Demasiado perfeito. E caro, evidentemente. Quando estive mesmo próximo de arriscar e deixar-me convencer pelo seu toque, chegou o iPhone e, como bom pecador que sou, não resisti à maçã. Procuro fugir das influências malignas -e benignas, da publicidade. Pelo menos também eu gosto de pensar que sim. Reconheço que a imagem que um produto transporta para o seu proprietário é uma carga relevante e que pesa na hora de optar. Por muito que não se queira, que se tenha o tal cuidado, que se tente racionalizar, todos estamos expostos a doses massivas de propaganda, cientificamente aperfeiçoada para nos dar a volta à cabeça. Mesmo assim, com toda a ciência que os dólares canadianos podem comprar, duvido que alguma vez a RIM me consiga convencer que as amoras são mais doces que as maçãs.
Qual é a essência da bicicleta? Se formos subtraindo peças a uma bicicleta de forma a que fique só o estritamente necessário a que lhe possamos continuar a chamar bicicleta, com que ficamos? Pouco mais que uma par de aros, cerca de meia centena de raios e dois cubos, uma forquilha e uma caixa de direcção mais um guiador e um avanço, um eixo e roda pedaleira, uma par de bielas e respectivos pedais, corrente e carreto, espigão e selim, uma mão cheia de parafusos e, claro, o quadro. Grande parte do fascínio pelas fixie ou bicicletas de carreto preso, tem que ver com o minimalismo, com a máquina na sua forma elementar, reduzida apenas à essência como que dum perfume se tratasse. Conhecidas também por bicicletas de pista porque são usadas nas provas de ciclismo em circuito fechado, têm geometrias de tal forma agressivas que algumas dão a ideia de serem impossíveis de montar.
Construídas desafiando as leis da física para reduzir o peso ao máximo possível, permitindo ao ciclista mudanças de ritmo e acelerações ao nível dum testarossa. Identificam-se facilmente pela ausência de manetes de travão e guiadores despidos, com todo o seu esplendor cromado à mostra. Verdadeiros icons do ciclismo permitem de forma inigualável a união entre homem e máquina. Quem pretenda dominar um puro sangue deste calibre terá que reaprender todo o conceito de andar de bicicleta. O eixo da roda motriz é fixo fazendo com que a transmissão, pedais-pedaleira-corrente-carreto-roda sejam um só elemento, em que tudo está de tal forma ligado que qualquer que se seja a direcção em que se pedala, a roda girará de acordo, permitindo por isso andar de marcha atrás. Parar nestas bicicletas é muito mais difícil que andar, pois requer uma perfeita coordenação de movimentos de forma a evitar a imobilização repentina da roda e consequente mais que provável descontrolo da máquina! Ver uma perito manobrar uma fixie e apreciar as acrobacias que os melhores conseguem fazer é um espectáculo empolgante.
Se substituirmos o cubo da roda traseira por um normal, ou seja que só quando a corrente o faz girar no sentido dos ponteiros dos relógio é que prende, fazendo evoluir a roda, ficando livre quando se pára de pedalar ou pedalamos ao revés, transformamos uma fixie numa singlespeed. Como se perde o efeito de tracção contínua do pedal, é necessário montar pelo menos um travão. Mesmo escolhendo um modelo de manete pequeno e um travão à roda da frente, na opinião dos puristas é já uma concessão à tecnologia e um luxo desnecessário. Bicicletas usadas sobretudo pelos mensageiros, têm vindo a ganhar adeptos em todo o mundo, entre rapazes e raparigas constituindo um dos mais emblemáticos e carismáticos grupos de ciclistas urbanos nos cinco continentes. Modelos de pista das décadas de 70 e 80 do século passado atingem preços exorbitantes em leilões e há lojas que transformam bicicletas de estrada com 20 e mais anos em fixie e vendem-nas ao preço de modelos topo de gama actuais. Todos os grande fabricante de bicicletas que apresentam nos seus catálogos um ou mais modelos de fixie e há dezenas de pequenos artesãos das bespoke bikes que se especializaram neste enorme nicho de mercado.
Quando usadas como bicicletas de trabalho, os seus pilotos exigem que sejam extremamente fiáveis e seguras, se escolhidas por opção de estilo e usadas de forma utilitária, porque têm menos componentes, mais dinheiro pode ser gasto e cada peça é escolhida criteriosamente. São bicicletas onde encontramos o que de melhor há disponível no mercado e que reflectem no todo e nas partes, o carácter do seu proprietário como nenhuma outra. Vários fabricantes de peças para bicicleta têm estes ciclistas como compradores duma significativa parte dos seus modelos de topo. Há muitos que a eles destinam linhas exclusivas ou adaptadas e há até alguns, não poucos! fabricantes de componentes só para fixie e single. Já para não falar em lojas onde quem perguntar por um desviador é logo olhado com desconfiança… Como muitas destas bicicletas são fruto da transformação e utilização de quadros antigos, com geometrias e especificações mecânicas já não usadas, algumas marcas de material de ciclismo viram aqui uma oportunidade e reapareceram no mercado componentes que vieram possibilitar o ressurgimento de outros modelos e estilos de velocípedes. Bicicletas aparentemente condenadas ao esquecimento por falta de peças, puderam ser recuperados e não é por acaso que há cada vez maior procura por bicicletas vintage.
Casas houve que saíram duma situação de falência e conseguiram voltar a afirmar-se no mercado. A procura é de tal maneira maciça que algumas marcas se vêm a braços com a incapacidade de responder ao mercado. Uma caixa de direcção Chris King e um par de cubos feitos com especificações só encontradas na aviação militar como os Phil Wood, o couro natural do selim Berthoud montado em carris de titânio, um guiador Cinelli recuperado dell’epoca d’oro della pista, são tudo componentes onde se pode facilmente gastar uma ou duas ou até mais centenas de euros. Num tempo em que o maior fabricante mundial de peças introduziu mudanças com comando electrónico nas bicicletas de competição em estrada, no outro extremo verifica-se um regresso às origens e ao aço, onde o plástico não tem lugar e as bicicletas são montadas com a precisão da mais apurada mecânica de relojoaria. Bicicletas que têm cada uma o seu próprio cheiro. O cheiro da paixão!
Agora vou ali dar umas pedaladas e ver se ganho coragem para escrever sobre o desviador traseiro no próximo texto!
Há quem veja as fixie como a ligação perfeita entre homem e máquina, reduzindo ao elementar a tecnologia. Duas rodas, um quadro, pedais e corrente.
Derivadas das bicicletas de pista, são mais que um meio de transporte, são toda uma filosofia, uma maneira única de viajar no tempo e no espaço.
Londres, bem como muitas mais cidades, têm visto não só aumentar o número de commuters, mas sobretudo aqueles que escolhem bicicletas de carreto fixo ou single speed.
Embora auto-proclamados gurus da moda nos adocem a boca com risengrød enquanto nos tentam impor estilos mais de acordo com a sua agenda, a verdade é que se há coisa que nunca muda, são os clássicos.
Porque não importa o que vestimos, mas o que somos, aqui deixo um vídeo (mais um!) onde se invertem papeis. Com muita pinta!