A Alemanha pode ser o motor da Europa por algumas boas e algumas más razões. É sobretudo um país onde se tenta fazer sempre melhor. Um país grande e diverso em que a bicicleta há tempo ganhou o estatuto de primeira escolha. Os índices de transporte urbano em duas rodas podem não ser os mais altos mas são bastante invejáveis. Nuremberga desenvolve desde 2009 um ambicioso projecto de promoção da bicicleta. Em quatro anos Nuremberga é mais ciclável e muito mais ciclada.
Os responsáveis alemães pelo projecto foram recentemente até Copenhaga e fizeram um filme inspirador. Copenhaga é a cidade que mais se tem afirmado como líder da promoção da bicicleta urbana. Pelo cruzamento de vertentes paisagísticas e arquitetónicas, do planeamento urbano alicerçado numa gestão sustentada do espaço público e das redes de transporte, e sobretudo pela colocação do Homem enquanto ser social, como centro do desenho urbano, Copenhaga tornou-se num verdadeiro berço e laboratório de ideias, um bebedoiro de modernidade onde todo o mundo vai beber um pouco de saber.
O filme está narrado e algumas entrevistas são em Alemão. Eu não encontrei nenhuma versão legendada em Português ou sequer em Inglês, mas como as entrevistas feitas na capital Dinamarquesa foram respondidas no idioma de Bradley Wiggins, vale bem a pena ouvir. E ver já que as imagens duma cidade submersa em bicicletas é sempre muito refrescante! Imaginem se eles tivessem este nosso fantástico clima! Os entrevistados são Camilla van Deurs, Partner Gehl Architects, Mikael Colville-Anderson do Copenhagenize e a Andres Røhl, Manager of Cycling em Copenhaga.
E já agora, alguém que daí desse lado saiba como, faça o favor de fazer chegar este filme às vereações municipais. Quem dera que valesse a pena fazer chegar até ao Governo mas como o filme passa o tempo a falar em diferentes formas de investimento público, o mais certo era o actual secretário de estado dos transportes (com letra pequenina, muito pequenina de propósito) fazer logo um dos seus discursos, com as habituais doses de desconhecimento, lugares comuns e demagogia barata!
Se há frases completamente esbatidas, a “que uma imagem vale mais que mil palavras” é uma. Mas é também uma frase com um certo grau de, digamos, imprecisão. Uma imagem pode necessitar de mais de mil palavras para ser descrita ou ser até impossível de traduzir por adjectivos e subjectivos e preposições. Uma imagem é sempre uma mensagem e a mensagem é palavras. Comunicamos por imagens e palavras, associando sempre umas às outras. Reflectimos enclausurando imagens em palavras e socializamos a escolher as palavras que melhor transmitem as imagens pretendidas.
A escolha das imagens que usamos como mensagem é um acto voluntário e consciente e essa escolha é a construção da imagem que queremos de nós. Nós somos a mensagem porque somos comunicação. Uma imagem serve de ilustração ao texto da mesma forma que pode o texto ser completado pela imagem. A coerência de cada um é uma linha viável que une o discurso -pensamento, valores, ideais- e a acção -a parte visível de cada um aos demais.
O Ministério da Administração Interna através da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana, a FPCUB e a SportZone, protocolizaram (grande palavrão) a campanha de segurança rodoviária que deu um cartaz, uns autocolantes e até um filme simpático. Chama-se tudo “Duas ou Quatro Rodas, Há Espaço Para Todas”. É uma iniciativa importante já que marca o reconhecimento tácito pelo Governo da relevância que a bicicleta ganhou enquanto veículo de transporte. Esta campanha é um muito bom exemplo duma série de mensagens que remetem constantemente para imagens.
As campanhas do tipo “partilhe a estrada” são sempre úteis para quem tenta dia-a-dia ganhar algum espaço, num meio tão desfavorável como são as estradas vistas e sentidas do selim. Recordar que a estrada é de todos e que um ciclista é tantas vezes um automóvel a menos no engarrafamento e a roubar o precioso estacionamento, lembrar que a bicicleta é um veículo perfeitamente viável em grande parte das deslocações urbanas, além de ser uma excelente forma de fazer exercício, são ideias muito positivas e especialmente bem vindas olhando às necessidades particulares e colectivas dos tempos actuais.
Embora ressaltem algumas imprecisões objectivas na brochura, como por exemplo afirmar que os automobilista e os ciclistas partilham os “mesmos direitos e deveres” ou argumentar que numa rotunda o ciclista se deve comportar “como qualquer outro veículo”, a campanha tem mérito também pela oportunidade de re-centrar a discussão na necessidade de adoptarmos todos, independentemente da quantidade de pares de rodas que usamos, comportamentos mais tolerantes e seguros. Claro que conseguir a disponibilidade do MAI e das Polícias, todos fundamentais na definição das políticas, da novas e desejadas políticas, que regulem, em lugar de desregular a estrada, é um feito relevante e que deve orgulhar a federação ciclo-turística. Ainda que seja tudo pago em publicidade.
Não seria particularmente motivo de admiração se os governamentais subscritores do referido protocolo, defendessem a obrigatoriedade do uso de capacete para quem se faz à estrada de bicicleta. Já estar a FPCUB associada a uma campanha em que o capacete aparece obrigatoriamente em todas as imagens, poderá aos mais incautos -escriba presente à cabeça- oferecer um travo de surpresa. Pois não é que todos os “bonequinhos” da brochura têm ou a cabeça bicuda ou uma semi-circunferência no alto do cocuruto? Pois é, a bonecada saiu toda pelo bico da caneta de capacete na carola! Vai-se a ver e as duas fotografias pespegadas no dito flyı -e aqui acrescento: uma menina numa e um menino na outra, tal qual manda o figurino, com ar de estranjas na certa! são de felizes ciclistas com a moleirinha bem aconchegada. Está tudo de capacete!
Leio com novidade que para os subscritores da dita brochura, FPCUB incluída, o uso do capacete é “altamente recomendável”. A ver se me faço entender: eu aceito a posição expressa na campanha com toda a naturalidade. A recomendação do uso do capacete é legitima desde que não envolva a defesa da submissão dos que assim não pensam a essa opinião. Ou seja, todos somos livres de opinar, mas cada um é livre de decidir. Mas quando se põe, numa brochura sobre a segurança dos ciclistas na estrada, todos de capacete, faz-se objectivamente uma declaração política. Ou não? E agora vamos tentar encaixar nesta posição a que diz “eu não uso capacete, pergunte-me porquê”.
Desconheço em que é que se baseia essa alta recomendação. O capacete será tão recomendável como um par de joelheiras e outro de cotoveleiras e já agora uma protecção de coluna e uns calções almofadados. E o capacete é fechado ou aberto e com protecção de queixo. A imagem que está escarrapachada na brochura é que um ciclismo seguro passa “obrigatoriamente” pelo uso do capacete. E disso há tantas provas que sim como há que não. O que há é a colagem da “obrigatoriedade” do uso do capacete à imagem da FPCUB. Será isso um investimento na segurança dos ciclistas?
O meu commuting é entre a periferia e a periferia. Vivo nos subúrbios e trabalho nos subúrbios. Embora faça uns “biscates” na cidade grande por conta própria, a maior parte das vezes que vou a Lisboa é ao volante do carro da empresa. Quem como eu passa a vida nos arrabaldes da cidade grande sabe o quanto é difícil tentar viver sem depender do carro. Não fora a bicicleta e ficaria frequentemente sem forma de regressar a casa, ou teria de palmilhar quilómetros a pé. Para quem vive e trabalha nos subúrbios, o transporte particular não é um luxo mas uma necessidade. Seja ele a motor ou não, carro ou bicicleta.
Os combustíveis pesam cada vez mais no orçamento das famílias e, mesmo com a redução das vendas, ainda são a principal razão pela dependência externa de Portugal. Se é verdade que com as políticas certas, o nosso país pode ser praticamente auto-suficiente em matéria alimentar, se em teoria podemos ser independentes em vestuário e calçado, como é verdade que já o fomos em produção de aço, vidro, construção naval e pescas, bem como em tantos outros sectores, a verdade é que muito dificilmente poderemos ser independentes em combustíveis.
Os transportes públicos ou colectivos são importantes na medida em que permitem que cada um de nós e todos em conjunto, dependamos menos do transporte individual. O transporte colectivo, mesmo que o preço do bilhete não cubra a totalidade do preço do serviço, e dessa forma nos custe um pouco a todos pela via dos impostos, poupa-nos muito porque reduz a necessidade de importarmos combustíveis. É fundamental tornar os TC numa real alternativa. É imperioso tornar mais pessoas “dependentes” dos TC.
Infelizmente estamos numa situação em que o discurso oficial desvaloriza os TC, reduz a oferta e a qualidade do serviço e aumenta os preços, afastando por essa via passageiros existentes e não cativando novos, para lá, claro está, daqueles a quem não resta escolha. A bicicleta é uma alternativa para uma imensa minoria com vantagens para a imensa maioria de quem pedala mas também para quem vê pedalar, da mesma forma que os TC são uma vantagem para todos, para os que os usam e para ou outros. Ainda para mais na situação actual do país. Bem ao contrário do discurso dos governantes.