Um dos quatro temas mais debatidos pela tribo das bicicletas dá mote ao texto que pode ler hoje. No seguimento deste e como anunciado, publico agora algumas considerações sobre a relação entre o carro e a bicicleta. Brevemente ainda me vão ouvir falar das ciclovias e a terminar a saga, dos capacetes.
O carro é o mau da fita. Tem sempre que haver um mau da fita: é o carro. Só os fósforos perdem mais valor que o carro com o uso. O carro é insaciável. O carro é exigente. O carro dita-nos os destinos, os quandos e os ondes. Nada nos dá mais estatuto social que o carro que levamos nas mãos. Nada nos detém por detrás do para-brisas! Quando estamos protegidos dentro do carro, somos indestrutiveis! Somos cativos do conforto do carro, apaixonados pelo som do motor, sonhamos com o cheiro a novo, ávidos de tecnologia de ponta. Há muito que o carro faz o mesmo que o Viagra, com versões também para mulher. O carro representa nações, povos, regimes, épocas. O carro alimenta paixões e gera ódios. Transporta a vida e leva a morte. Vai à guerra e é a guerra. Há carros para todos gostos, para todas as algibeiras, de todas as cores e feitios. O carro é o mau da fita perfeito!
O carro está por tudo o lado e não parece que esteja com vontade de ir embora. Apesar te ser uma máquina relativamente simples e até algo arcaica, o automóvel tem sido o mais bem conseguido objecto de consumo da indústria da publicidade. Desde que nascemos que vivemos rodeados e carros. O carrinho de bebé e os carrinhos do bebé. O carro do supermercado e o carro de mão. Nos desenhos animados os animais da selva têm rodas e no cinema nunca vi um actor a fazer de carro mas já vi carros a fazer de actor… O carro é o rei! Não há artista da música ‘róh que viva longe dos carros e no futebol o jogador é o carro com que chega ao treino. Se a imagem dos deuses não andasse hoje em dia tão desvalorizada, diria que o carro é um deles. Verdadeiramente omnipresente.
Não são só os combustíveis e óleos que alimentam o carro mas praticamente tudo nele gira à volta do petróleo. O carro reflecte melhor que tudo, a dependência em que a sociedade de consumo vive da indústria do ouro negro. Esta dependência é por vezes voluntária e noutras nem tanto. Um cidadão pode querer depender do carro ou pode não ter escolha. E é aí que bate o ponto! É possível que muitos cidadãos encontrem alternativas ao automóvel, mas pensando numa emancipação social em relação à dependência do quatro rodas, ela só chegará quando isso for entendido pela sociedade em geral como uma necessidade. Quando a política de transportes, rodoviária, educativa, fiscal, quando as prioridades de desenvolvimento (?) passarem por diminuir essa mesma dependência.
Cada um de nós que opte, por exemplo, pela bicicleta em detrimento do carro, está a contribuir de várias maneiras para reduzir a famigerada dependência do carro. Mas a bicicleta, porque não é opção para a maioria dos transeuntes, não é o santo graal da mobilidade. Pode ser que um dia venha a ser mas esse dia ainda está longe. O grande predador do automóvel é o transporte público e será por essa via que se reduzirá a dependência do carro. Outras formas de reduzir o impacto do automóvel nas nossas vidas têm que ver com a gestão do espaço alocado ao estacionamento, com a limitação ou eliminação total do acesso por carro a áreas sensíveis das cidades, com a maior e mais efectiva responsabilização do automobilista pelos impactos negativos que pode causar, quer de forma activa -velocidades excessivas, quer de forma passiva -estacionamento em passadeiras.
O homem move-se para trabalhar, conviver. Andamos dum lado para o outro por tudo e por nada. A mobilidade é vital. Uma vez que foi dado às pessoas “o direito” a acederem a todo o lado de carro, uma vez que se pretende, e bem, cortar esse “direito”, é forçoso que duas coisas aconteçam. Primeiro que sejam convencidas das vantagens desse “corte”; segundo que lhes sejam dadas alternativas. Valorizar o trânsito pedonal, melhorar as redes de transportes colectivos e (hélas!) incentivar a utilização da bicicleta, são necessidades imperiosas para requalificar as cidades, promover o desenvolvimento económico e social mas sobretudo para diminuir a dependência que Portugal padece do carro. Será que é nesse sentido que se tem caminhado? Como sempre há de tudo. A nível local tem havido algum progresso e podem citar-se felizmente bons exemplos que nos dão esperança que há uma nova mentalidade a tomar conta de algumas cadeiras com poder. E a nível do Governo? O Governo está a fazer o seu melhor para nos pôr a todos a andar a pé e de bicicleta ou não andar mesmo. Com os preços galopantes dos transportes e dos combustíveis estamos perante o mais forte impulso de sempre dado à bicicleta. Já para não falar que à velocidade que fecham empresas, em muitas estradas do país foi substancialmente reduzido o trânsito nas horas de ponta!
Por vezes confunde-se a fome com a vontade de comer. É fácil -e cada vez mais comum nos exemplos que nos chegam de cima- encontrar soluções populistas para problemas estruturais. Institui-se universalmente a teoria do utilizador-pagador e aquilo que é um problema de todos, merecedor duma solução global, passa a ser um problema de cada um, a ser resolvido de forma individual. Tenho a certeza que o aumento do custo de vida tem levado muitas pessoas a considerar alternativas na sua vida. Há seguramente quem tenha descoberto a bicicleta por causa do aumento do preço da gasolina. Daí até se concluir que aumentar o preço dos combustíveis é resolver os problemas da mobilidade, ou que por essa via se promove a bicicleta, vai um grande engano. Quando ouço vozes a pedir aumentos ainda maiores para a gasolina, pois dessa forma as pessoas deixariam de vez o popó parado, creio que o essas vozes esquecem é que o pão que lhes cala a boca, o leite dos petizes, a saladinha que levam na lunch box tão cool, não chegam montadas num burro!
Ver no automobilista um inimigo, alguém que vive nas trevas, que polui só porque quer, que odeia a vida, alguém que vive empenhado em destruir a Terra, ver em cada automobilista a personificação do mal, um Barbodemo! não nos leva muito além do ponto a que chegámos. Talvez ver em quem está sentado ao volante um possível-futuro ciclista, seja meio caminho para se conseguir transformar mentalidades. Não é por eu andar de bicicleta que tenho uma qualquer superioridade moral, nem foi por via dos pedais que adquiri o direito de julgar os outros apenas pelos meus interesses. Lá porque quando me desloco de bicicleta não gasto petróleo, não me nascem verdades absolutas na cabeça. A minha opção de vida, a minha escolha velocipedista é um exemplo de mobilidade mas tem de ser também um exemplo de cidadania, de respeito, nunca um motivo de conflito.
Ninguém contesta a imagem de ser o carro muito mais potente que a bicicleta. O mundo do carro quero eu dizer. Enfrentar um mundo tão vasto e poderoso como o do carro requer mais que um par de punhos. Requer perceber bem o que está em jogo do lado de lá. Que interesses se fazem transportar de carro, quem se alimenta desta dependência. Quem ganha com as PPP rodoviárias e quem lucra com o fecho da linha férrea. Quem enriquece com os lucros da GALP e quem constrói parques nos centros das cidades. Quem tem ganho com o atraso da rede de bicicletas partilhadas em Lisboa. Quem encolhe a barriga em cima da bicicletas de frente para os fotógrafos mas não mexe uma palha para punir quem estaciona no passeio? Sim, porque aqui como em quase tudo, há a quem apontar dedos. Ou não há? O que foi que tornou possível que em países com muito mais poder de compra, os cidadãos optem por limitar a dependência do automóvel? Pode ter acontecido que os cidadãos desse lugares tenham perdido a paciência e tenham punido quem lhes tolhia a qualidade de vida. Pode ser que se tenham tornado exigentes. Lutar contra o poder do carro requer que se escolha bem os aliados, que não se acabe a dar armas aos que nos garantem um futuro em quatro rodas. Mas implica também olhar do lado de fora do pára-brisas e perceber que quem vai lá dentro é sobretudo vítima.
Porém o mundo gira e as coisas mudam. No império do carro, nos Estados Unidos da América, um recente estudo deu conta que pela primeira vez o carro deixou de ocupar o primeiro lugar no sonho americano dos jovens gringos. Na última década e pela primeira vez a industria automóvel dos EUA vendeu marcas e a capital do carro Detroit, quase que desapareceu do mapa. O preço dos combustíveis e o fim dos apoios federais aos SUV levou ao primeiro lugar das vendas, marcas asiáticas e o diesel entrou no léxico dos automobilistas. Marcas alemãs publicitam os modelos de topo com base nos baixos consumos. Os motores já não se medem apenas em cavalos mas sobretudo em quilómetros por litro. Tornaram-se blue e green. Novos motores eléctricos podem-se recarregar como um vulgar telemóvel. O carro é cada vez mais um electrodoméstico. Acabar com a supremacia do carro nas nossas cidades passa seguramente por escolhas pessoais que vão muito para lá das questões da mobilidade.