DIZ-ME COM QUEM ANDAS, DIR-TE-EI COMO PEDALAS


Ensina-nos a mais libertadora das ideologias que os avanços se fazem também de recuos. A dimensão da individual existência turva-nos a memória e tira-nos do alcance o imparável passo do homem para um mundo melhor ao ponto de tal ensinamento nos parecer contraditório. Ainda para mais atravessando estes tempos presentes onde a noite se adensa e nos remete para passados já pensados impossíveis, cresce o descontentamento e o desânimo, alimentados por pensamento único, inevitável. Por muito má que seja a estrada só há uma maneira de seguir viagem: acreditando que é possível outro caminho e fazer valer a vontade de mudar e derrotar os Cabrais.

As opções políticas dos actuais senhores do poder, maioria parlamentar e Governo, têm penalizado fortemente quem vive dos rendimentos do trabalho, seja pela via da subtracção de salário, pelo aumento de impostos directos e indirectos e pelo aumento do tempo de trabalho sem o respectivo pagamento. Os transportes públicos, cada vez mais uma real alternativa para quem não consegue suportar o aumento dos combustíveis e abandona, ainda que relutantemente, o uso do automóvel no dia-a-dia, sofreram aumentos brutais, em alguns casos quase para o dobro, e foram reduzidos os incentivos por via de desconto no Passe Social para jovens e pensionistas.

A par do aumento do custo do bilhete o Governo decide reduzir o número de carreiras e a sua frequência horários por razões meramente economicistas e com argumentação perfeitamente desajustada, pois não é viável basear a operacionalidade dos sistemas de transportes no preço dos bilhetes nem é reduzindo a oferta que se capta mais clientes. Os propósitos são evidentemente a criação de condições para entregar à iniciativa privada -e à consequente busca do lucro- a mobilidade dos cidadãos. Estas decisões do Governo PPD/CDS não só não resolverão os problemas conhecidos como agravarão a qualidade dos serviços e apontam por caminhos à revelia das experiências de cidades vanguarda em matéria de transporte e mobilidade.

Por aqui se deu conta dum pequeno passo para o homem que representou uma volta maior no pedal da alteração do estado das coisas para a bicicleta em Portugal. Avançou-se no sentido da solução de problemas e na perspectiva de abrir espaço para o encontro de vontades comuns. Os sinais que nos chegaram nessa manhã da rua de São Bento foram de esperança. Conhecidos que são hoje os desenvolvimentos e os quatro textos levados a votação pelo PSD, CDS, Bloco de Esquerda e pelo Partido Ecologista “Os Verdes”, a primeira coisa que se conclui é que o tal consenso procurado não chegou a ser encontrado.

Seria expectável que pelo menos os Partidos de Direita, unidos que estão nos destinos de Portugal, tivessem chegado a um entendimento sobre um texto mas nem isso aconteceu. Ambos os Partidos submeteram Projectos de Resolução com o objectivo de fazer recomendações ao Governo no sentido da promoção dos modos suaves e da mobilidade ciclável. Tanto o PR 96/XII como o PR 101/XII inscrevem uma série de lugares comuns, verdadeiros é certo mas não passam de evidências que tanto servem para recomendações como para revoluções, que precedem as três recomendações de ambos os projectos, praticamente com o mesmo conteúdo e a mesma parca ambição.

Alterar o Código de Estrada é o que se propunha o Projecto Lei 82/XII do BE. Medidas concretas, objectivas tornando a bicicleta parte inteira e igual na selva das estradas, dando-lhe direitos para lhe exigir responsabilidade, acabando com o estatuto de marginal que todos os que escolhemos a bicicleta como meio de transporte temos aos olhos da lei. O PL 79/XII d’Os Verdes procurava implementar duma vez por todas e de forma efectiva, metas e objectivos para a rede nacional de ciclovias. Os mesmos deputados que recomendam ao Governo “que tenha em conta a utilização do uso da bicicleta na rede viária” recusam na prática efectuar essas alterações ao CE.

O PSD recomenda ao Governo a “incorporação de soluções facilitadoras e promotoras do uso da bicicleta” e a “instalem mecanismos práticos, facilitadores e promotores do uso de bicicleta” mas votou contra a inscrição na lei dum plano ambicioso de ciclovias que põe sob o mesmo tecto legislativo o poder nacional e local e cria a base dum país verdadeiramente ciclável. Finalmente! Ambos os textos apresentados pelo BE e pel’Os Verdes já tinham sido derrotados pelo sectarismo parlamentar em anteriores legislaturas. Não só as condições que estão na sua oportunidade se mantêm como prevaleceu infelizmente uma vez mais a demagogia.

Sinceramente, nada disto me surpreende, pois não é possível atacar o transporte público, destruir os direitos de quem trabalha, tornar a saúde num luxo e minar o sistema de ensino universal, e ser ao mesmo tempo a favor de maior justiça em termos de mobilidade. Por mais palavras bonitas que se juntem, por muito que se branda sobre as metas do carbono, a cidades sustentáveis, o preço dos combustíveis e outros valores tão reais mas também tão na moda; por muito que se enalteça a bicicleta é no concreto da acção, na afirmação da vontade efectiva de mudar o actual estado de coisas que se deixa a marca que no futuro revelará quem escolheu o caminho certo. Quem deu os passos adiante e quem andou aos arrecuas.

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6 Respostas para “DIZ-ME COM QUEM ANDAS, DIR-TE-EI COMO PEDALAS”

  1. Absolutamente brilhante!
    A dialética científica na análise mais directa da acçäo dos partidos da Assembleia no contexto dos seus reais projectos para o País é obrigatória.
    Com elucidaçöes como as que este artigo faz näo nos podemos queixar de falta de informaçäo e na altura do voto näo se justificam ilusöes.
    Além de sabermos os promotores das causas da diminuiçäo das nossas condiçöes de vida resta-nos, tal como enunciado no texto não esquecer e repetir os erros das más escolhas de sempre.
    Acreditar que um novo projecto para Portugal existe e é possível…

  2. Cito: “e à consequente busca do lucro”. Uau… isto é capaz de ser das piores coisa que já li! Como se a procura do lucro fosse uma coisa má!

    Vejamos o que pode acontecer havendo privatização, neste caso, dos transportes públicos:

    1- privatizam-se as empresas. Como bem diz, estas procuram o lucro.
    2- havendo carreiras limitadas, o lucro é também limitado. Podem aumentar o preço dos bilhetes, mas chega a um ponto em que, pura e simplesmente, as pessoas deixam de usar os transportes porque são caros.
    3- estando o preço dos bilhetes num ponto insustentável, a empresa privada tem duas opções: fechar ou abrir mais carreiras. Sendo a 1ª opção a pior, parece-me óbvio que escolhem a 2ª.
    4- abrindo mais carreiras, também aumentam o nº de clientes, logo mais lucro.
    5- repetir passo 4 até à exaustão. Com jeitinho, havendo mais do que uma empresa, até é bem possível que baixem o preço dos bilhetes (aka concorrência e lei básica do mercado).
    6- problema dos transportes públicos resolvido: há transportes, há percursos, há clientes.

    Onde está o problema?

    Infelizmente, o problema está nas pessoas que acham que o estado deve resolver todos os problemas.

    O estado deve fornecer aos cidadãos as ferramentas para que estes resolvam os seus problemas, não mais do que isso.

    De resto, moro actualmente em Cambridge, UK e uso a bicicleta diariamente nas minhas deslocações. De acordo que Portugal tem muito a aprender sobre a utilização urbana de ciclovias, mas enquanto não houver um verdadeiro lobby, apolitico, sobre o assunto, estamos presos às decisões de alguns “iluminados” que acham que sabem o que fazer. Na Câmara de Lisboa, José Sá Fernandes é um bom exemplo de um “iluminado”. Até tem bons princípios, mas a implementação é tão má que mais valia estar quieto.

    • A procura do lucro não é necessariamente uma coisa má e não terá lido isso escrito por mim em lado algum. A sua ilação é redutora e errada!

      Entregar serviços sociais como sejam os cuidados de saúde, a educação ou os transportes a entidades que têm por objetivo primeiro rentabilizarem o investimento por via do lucro é que é errado.

      Não sei se por estar ausente se por mero desconhecimento da realidade portuguesa mas se dedicar algum tempo a analisar o que tem trazido ao consumidor, aos cidadãos, a entrega à iniciativa privada dos transportes suburbanos em Lisboa, Porto e demais cidades; o que aconteceu aos preços com a liberalização de mercados dos combustíveis e das telecomunicações; se ler os alertas lançados ainda hoje pelo Provedor de Justiça para a prevista privatização das Águas de Portugal e desregulação do mercado da energia elétrica, perceberá melhor que o seu enunciado não só é ficcional como não tem base alguma na experiência.

      Vivendo no Reino Unido pode facilmente se informar sobre o impacto que as privatizações e as políticas neoliberais, que tiveram o seu auge nos tempos sombrios da Iron Lady e da aplicação das teorias da Escola de Chicago, tiveram na qualidade e no preço de serviços como o Royal Mail ou o National Rail. Descubra porque funciona de forma excecional o Transportation For London e apure as formas do seu financiamento. Procure saber quanto é que representa na receita os atuais aumentos das tarifas, de quanto é o buraco e quanto é que os salários representam nesse buraco.

      Repare, os primeiros a acharem que é ao Estado que compete resolver as questões todas são os senhores que estão no poder. Basta ver os casos BPN. Basta ver a forma como o Estado impõe o empobrecimento da maioria do cidadãos ao mesmo tempo que privilegia a salvaguarda dos interesses duma minoria.

      Já viu onde está o problema?

  3. Humberto. Vou comentar este teu post, não por uma questão ideológica nem pelo exercício do contraditório. Obviamente que o poderia fazer relativamente a teorias conspirativas sobre mobilidade e políticas governamentais mas não o farei.

    Faço-o numa tentativa de esclarecimento factual apenas.

    Assim:

    . O PSD e O CDS apresentaram cada um o seu PPR porque não houve nenhum tipo de concertação prévia nem tinha de haver, seja relativamente à mobilidade suave, seja relativamente a qualquer outro assunto.

    . Fui eu que tomei a iniciativa no GP PSD de elaborar a PPR e que, na fase de discussão em Plenário, ter sugerido a todas as forças políticas proponentes que o conjunto dos diplomas baixasse à especialidade sem votação.

    . De resto e em fase de especialidade também o PS optou, e bem, por apresentar o seu PPR.

    . Criou-se então um texto de substituição que fundiu os 3 PPR (CDS, PSD e PS) e incorporou as sugestões que o BE e PEV consideravam básicas para votarem favoravelmente (tal como, de resto, se verificou).

    . O PCP, desde o primeiro momento, excluiu-se deste processo.

    . Esta é uma matéria em que tem de ser o Governo a legislar e, de resto, conforme é do conhecimento público, se prepara para legislar.

    . O texto de substituição que foi aprovado é uma recomendação ao Governo para a importância de, na revisão, serem levados em linha de conta os aspetos relevantes da mobilidade suave.

    . Perante esta circunstância ficariam sempre prejudicados os PPL do PEV e BE uma vez que se intrometem na esfera legislativa do Governo.

    Aquilo que eu acho importante é que, relativamente a este tema, se baixe a intensidade da artilharia ideológica. Todos temos a ganhar com isso.

    • As questões ideológicas são as verdadeiramente importantes pois é por elas que fazemos as nossas opções e escolhas.
      As iniciativas do BE e do PEV não se intrometem na esfera do Governo visto ser o Parlamento o órgão legislativo e o Governo o Executivo.
      Na verdade não se vislumbram razões para a não votação positiva de ambos os PL já que o adiamento das alterações neles propostas apenas adiam a solução para problemas por demais identificados.
      As recomendações aprovadas são não só pouco ambiciosas como demasiado generalistas.
      Abraços e boa sorte.

  4. Gostei de lêr o post, boa reflexão.
    um abraço

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