NO PRINCÍPIO ERA A BICICLETA


Qual é a essência da bicicleta? Se formos subtraindo peças a uma bicicleta de forma a que fique só o estritamente necessário a que lhe possamos continuar a chamar bicicleta, com que ficamos? Pouco mais que uma par de aros, cerca de meia centena de raios e dois cubos, uma forquilha e uma caixa de direcção mais um guiador e um avanço, um eixo e roda pedaleira, uma par de bielas e respectivos pedais, corrente e carreto, espigão e selim, uma mão cheia de parafusos  e, claro, o quadro. Grande parte do fascínio pelas fixie ou bicicletas de carreto preso, tem que ver com o minimalismo, com a máquina na sua forma elementar, reduzida apenas à essência como que dum perfume se tratasse. Conhecidas também por bicicletas de pista porque são usadas nas provas de ciclismo em circuito fechado, têm geometrias de tal forma agressivas que algumas dão a ideia de serem impossíveis de montar.

Construídas desafiando as leis da física para reduzir o peso ao máximo possível, permitindo ao ciclista mudanças de ritmo e acelerações ao nível dum testarossa. Identificam-se facilmente pela ausência de manetes de travão e guiadores despidos, com todo o seu esplendor cromado à mostra. Verdadeiros icons do ciclismo permitem de forma inigualável a união entre homem e máquina. Quem pretenda dominar um puro sangue deste calibre terá que reaprender todo o conceito de andar de bicicleta. O eixo da roda motriz é fixo fazendo com que a transmissão, pedais-pedaleira-corrente-carreto-roda sejam um só elemento, em que tudo está de tal forma ligado que qualquer que se seja a direcção em que se pedala, a roda girará de acordo, permitindo por isso andar de marcha atrás. Parar nestas bicicletas é muito mais difícil que andar, pois requer uma perfeita coordenação de movimentos de forma a evitar a imobilização repentina da roda e consequente mais que provável descontrolo da máquina! Ver uma perito manobrar uma fixie e apreciar as acrobacias que os melhores conseguem fazer é um espectáculo empolgante.

Se substituirmos o cubo da roda traseira por um normal, ou seja que só quando a corrente o faz girar no sentido dos ponteiros dos relógio é que prende, fazendo evoluir a roda, ficando livre quando se pára de pedalar ou pedalamos ao revés, transformamos uma fixie numa singlespeed. Como se perde o efeito de tracção contínua do pedal, é necessário montar pelo menos um travão. Mesmo escolhendo um modelo de manete pequeno e um travão à roda da frente, na opinião dos puristas é já uma concessão à tecnologia e um luxo desnecessário. Bicicletas usadas sobretudo pelos mensageiros, têm vindo a ganhar adeptos em todo o mundo, entre rapazes e raparigas constituindo um dos mais emblemáticos e carismáticos grupos de ciclistas urbanos nos cinco continentes. Modelos de pista das décadas de 70 e 80 do século passado atingem preços exorbitantes em leilões e há lojas que transformam bicicletas de estrada com 20 e mais anos em fixie e vendem-nas ao preço de modelos topo de gama actuais. Todos os grande fabricante de bicicletas que apresentam nos seus catálogos um ou mais modelos de fixie e há dezenas de pequenos artesãos das bespoke bikes que se especializaram neste enorme nicho de mercado.

Quando usadas como bicicletas de trabalho, os seus pilotos exigem que sejam extremamente fiáveis e seguras, se escolhidas por opção de estilo e usadas de forma utilitária, porque têm menos componentes, mais dinheiro pode ser gasto e cada peça é escolhida criteriosamente. São bicicletas onde encontramos o que de melhor há disponível no mercado e que reflectem no todo e nas partes, o carácter do seu proprietário como nenhuma outra. Vários fabricantes de peças para bicicleta têm estes ciclistas como compradores duma significativa parte dos seus modelos de topo. Há muitos que a eles destinam linhas exclusivas ou adaptadas e há até alguns, não poucos! fabricantes de componentes só para fixie e single. Já para não falar em lojas onde quem perguntar por um desviador é logo olhado com desconfiança… Como muitas destas bicicletas são fruto da transformação e utilização de quadros antigos, com geometrias e especificações mecânicas já não usadas, algumas marcas de material de ciclismo viram aqui uma oportunidade e reapareceram no mercado componentes que vieram possibilitar o ressurgimento de outros modelos e estilos de velocípedes. Bicicletas aparentemente condenadas ao esquecimento por falta de peças, puderam ser recuperados e não é por acaso que há cada vez maior procura por bicicletas vintage.

Casas houve que saíram duma situação de falência e conseguiram voltar a afirmar-se no mercado. A procura é de tal maneira maciça que algumas marcas se vêm a braços com a incapacidade de responder ao mercado. Uma caixa de direcção Chris King e um par de cubos feitos com especificações só encontradas na aviação militar como os Phil Wood, o couro natural do selim Berthoud montado em carris de titânio, um guiador Cinelli recuperado dell’epoca d’oro della pista, são tudo componentes onde se pode facilmente gastar uma ou duas ou até mais centenas de euros. Num tempo em que o maior fabricante mundial de peças introduziu mudanças com comando electrónico nas bicicletas de competição em estrada, no outro extremo verifica-se um regresso às origens e ao aço, onde o plástico não tem lugar e as bicicletas são montadas com a precisão da mais apurada mecânica de relojoaria. Bicicletas que têm cada uma o seu próprio cheiro. O cheiro da paixão!

Agora vou ali dar umas pedaladas e ver se ganho coragem para escrever sobre o desviador traseiro no próximo texto!

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