A MARCA DO PEDAL
Uma das grandes vantagens da bicicleta é deixar-nos onde queremos ir. É a forma mais prática de ir desde o ponto A até mesmo ao ponto B. Se de carro temos como grande preocupação onde estacionar, quando deixamos as quatro rodas paradas, há que seguir a pé até ao destino final, com metade do rodado essa preocupação não existe. Existem outras, como a segurança, mas com os roubos preocupam-se também os automobilistas.
Se há algo que arrelia os commuters são as latas que por eles passam, muitas vezes tão de raspão que em muitos países já seria uma infracção grave. Diga-se em abono da contemporaneidade que nestes dois últimos anos a consideração e a forma como os condutores encaram a partilha do asfalto com a bicicleta, tem evoluído de forma positiva. Algumas vezes já se detiveram carros em entroncamentos em que a prioridade lhes pertencia, para me deixarem passar e, embora isso não seja muito vulgar, se por um lado indicia certa surpresa do condutor, por outro prova que nem todos se sentem possuídos de um instinto assassino, como por exemplo os condutores que fecham de tal maneira as curvas que por pouco não me espalmam contra os carros estacionados.
Vem isto a propósito duma conversa com amigos que não usam a bicicleta diariamente, mas têm pena. Uma das razões evocadas para o não fazerem é a falta de condições que lhes dêem segurança e os protejam de alguma forma contra as tais latas. Trajectos como os que ligam o Parque das Nações a Telheiras, ou ao Campo Pequeno, ou à Cidade Universitária, os Olivais ao Lumiar, tudo distâncias inferiores a dez quilómetros, não são feitas de bicicleta porque os candidatos não se sentem seguros. A segurança é um estado de espírito, não é um capacete, como já aqui se disse e se reafirma, mas o que é verdade é que as condições objectivas ainda não foram capazes de condicionar as condições subjectivas.
Dessa conversa fiquei com a ideia que nós, os que já andamos todos os dias na cidade de bicicleta, damos uma imagem bastante indisciplinada e de incumpridores das regras que gerem os vários trânsitos. Que, por exemplo, nunca paramos nas passadeiras, andamos pelos passeios como se peões fossemos e não respeitamos os sinais vermelhos. Com muita pena minha o número de ciclotransportados com que me cruzo normalmente, não me permite meter as mãos no lume por ninguém, mas lá lhes fui dizendo que não será bem assim, que eu até paro sempre, que se queremos ser respeitados… blá, blá, blá! mas não me mostraram caras de convencidos.
Andar na estrada tal como, em sentido mais lato, conviver na selva urbana, seja montado num SUV ou num par de havaianas, pressupõe a capacidade de interiorizar algumas noções de partilha. Uma das noções é a de espaço, coisa rara se o pensarmos de forma egoísta, mas que abunda quando olhamos à volta e consideramos apenas a quantidade que necessitamos. O acto de parar numa passadeira para deixar passar um peão, pedalarmos muito devagar quando temos de circular pelo passeio (embora neste caso ser sempre preferível desmontar), darmos sempre a prioridade aos peões, o não passarmos na “bisga” em frente ao Café do Peter no Parque das Nações, dará de nós, os bicimobilisados, uma imagem mais de acordo com o nosso próprio interesse.
Cada cidadão que anda a pé é, maioria das vezes, um automobilista. A ideia que o cidadão peão fará do cidadão em cima da bicicleta, vai seguramente reflectir-se na forma como nos verá através do párabrisas do seu carro. Como é que gostaria que ele o visse? Então que tal começarmos a fazer por isso.
15 de Setembro de 2009 às 11:16
se têm essa ideia dos ciclistas imagino a ideia que têm dos automobilistas!! eheh
15 de Setembro de 2009 às 11:30
Estamos todos no mesmo barco, Gonçalo…
15 de Setembro de 2009 às 14:26
desrespeito aos peões eu acho algo intolerável, e já o tenho escrito. agora desrespeitar semáforos, sentidos proibidos, separadores, etc. acho perfeitamente aceitável.
Toda essa panafernália de regulação de trânsito contem dois absurdos em si mesmo:
1. só existem devido ao automóvel (nas cidades com poucos automóveis e com muitos transportes públicos, peões e bicicletas, praticamente não há necessidade de regulação)
2. em Portugal estão sempre pensados exclusivamente para o automóvel (por ex, um automóvel nunca espera mais de um ciclo nos semáforos para passar um cruzamento, mas o peão pode chegar a esperar três!!)
Dados ambas injustiças, eu não tenho problema nenhum em assumir que as desrepeito totalmente, quando a minha segunraça não está em perigo.
Mais, há vários países onde a bicicleta é autorizada a cometer “ilegalidades” como circular em sentido proibido. Noutros, as autoridades têm a política de fechar os olhos ao desrespeito dos ciclistas.
Eu percebo que a nossa indisciplina pode ser um tiro no pé, mas os automobilistas têm que perceber que tudo é feito à imagem deles, apesar deles serem metade das deslocações e apesar deles serem o modo que mais atrapalha os outros todos.
15 de Setembro de 2009 às 15:04
Eu sei…e também não ponho a mão no lume por ninguém neste caso.
Acontece é que se “marca” toda uma comunidade ciclística porque alguém de bicicleta prevaricou (independentemente do “grau” de prevaricação) enquanto que com quem anda de carro isso raramente acontece. Estacionar em cima do passeio, atender o telefone ao volante são, por exemplo, considerados males menores!!
15 de Setembro de 2009 às 15:27
Estou de acordo com a ideia geral do post menos com o ultimo paragrafo.
“Cada cidadão que anda a pé é, maioria das vezes, um automobilista.”
Gostava de saber as estatísticas em que te baseias para fazer esta afirmação.
15 de Setembro de 2009 às 16:11
Não me baseio em estatísticas nenhumas, Tiago. Baseio-me, como a maioria do que aqui podes ler, na minha avaliação do mundo.
Gosto de pensar que assim é, porque se calhar aquele peão que me vê parar para o deixar passar, ser também como eu, um utilizador de diferentes meios de transporte, vai construir uma melhor ideia dos que andam a pedal. Chama-lhe jogar pelo seguro, se quiseres.
“Eu não vivo numa sociedade perfeita”, com canta o Pablo Milanés, mas prefiro que não seja mais imperfeita por minha causa. Também desrespeito regras quando pedalo, já que com o desajustamento do nosso CdeE à circulação de bicicletas em segurança em ambiente urbano, é impossível não ser prevaricador.
No texto que escrevi realço a necessidade e a responsabilidade que temos quantos pedalamos na cidade, de o fazer de forma segura para nós e para com todos com quem nos cruzamos. Andar no passeio do Parque das Nações de bicicleta pelo meio de crianças e bebés não é, só por si, um risco exagerado, mas basta ver a quantidade de inconsciência que por lá pedala para perceber como há demasiadas excepções à regra do bom senso.
Não acho que estejamos numa situação em que seja benéfico culpar os automobilistas de todos os males. As condições estão criadas para que o carro particular seja, para demasiadas pessoas, a única alternativa à mobilidade.
Estar do lado certo, Miguel, dá-nos mais responsabilidade.
15 de Setembro de 2009 às 22:51
Se calhar a tua avaliação do mundo neste caso não estará um pouco desfasada da realidade? Já paraste para pensar que se calhar estás a ser iludido?
Apesar dos automóveis ocuparem bastante espaço quando estacionados, de fazerem filas de quilómetros diariamente nas entradas e saídas das cidades portuguesas, de terem direito a actualizações do estado do transito de 5 em 5 minutos em qualquer estação de rádio, os carros continuam a ter uma ocupação média miserável de 1.2 a 1.4 pessoas transportada.
Desta forma encontro uma possível explicação para a ilusão de que a maioria dos peões sejam automobilistas. Penso que na cidade de Lisboa por exemplo, apenas um terço das pessoas utiliza diariamente o automóvel. Não será portanto uma maioria.
16 de Setembro de 2009 às 00:20
E já pensaste que automobilista pode não ser só aquele que conduz um automóvel? Pode ser também a pessoa que se dedica ao automobilismo? E neste caso ainda seriam menos!
O automobilista de que falo somos todos. Uns mais que outros, claro.
O automobilista que sugiro -de forma imperfeita, já se vê- mais que um cidadão concreto, é um estado de espírito que vive em muitos cidadãos. Que pensam o mundo com o carro no centro. Que vivem num meio pensado (?) e feito (!) para o automóvel.
É que ainda não é precisa ter carta de condução para se ser cidadão.
Um cidadão que se enquadra no meio da multidão anónima, donde alguns escapam e escolhem as duas rodas a pedal como alternativa.
É este o meu automobilista.
16 de Setembro de 2009 às 22:02
Peço desculpa então, o meu dicionário é que já está desactualizado. A palavra automobilista já evoluiu e agora pode ser aplicada num âmbito mais abrangente. É o que dá não escrever em línguas mortas. Para a próxima talvez tente o latim.
16 de Setembro de 2009 às 23:47
Não devemos ser prisioneiros das palavras…
Eu concordo com o que disse, acho apenas que a mentalidade de automobilista não é um exclusivo dos titulares de carta de condução.
Abraços.